domingo, 29 de agosto de 2021

TRANSLUCIDEZ

 

deveria ter bebido

talvez até me embriagado

assim deixaria o meu corpo de lado

e ao ser descoberto abandonado

seria dado como morto

seria velado e enterrado

talvez até cremado conforme o combinado

deveria ter me embriagado

e ao retornar ao meu corpo ainda bêbado

por certo ainda cedo

não o reconheceria como a minha propriedade

talvez o enxergasse

como paisagem desprovida de gente

uma paisagem sem flores

onde as árvores queimassem

como se não sentissem dores

deveria ter me embriagado

assim não teria esse corpo

não estaria absorto no meio dessas palavras

esperando a minha vez

na fila da lucidez

CRUZANDO A PONTE BUARQUE DE MACEDO

Cruzei a Ponte Buarque de Macedo

muito bêbado

muito emaconhado

mareado

flutuando quase alado

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

chocado

dentro de um ovo carregado pelo povo

desarmado de concreto

nem cheguei do outro lado

do passado

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

com muito medo

mas já era tarde para trocar de medo

ou muito cedo

para saber que o medo não tem lado

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

enrabado pelo galo

empurrado por um falo que parecia anormal

mas pela cor e pelo cheiro

era apenas carnaval

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

carregando a minha cruz

muito antes de Jesus

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

na ponta dos pés

na ponta dos dedos

para não mostrar ao rio os meus segredos

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

carregado por parentes

dentro de um esquife indecente

com as alças cravejadas por meus dentes

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

um pouco mais cedo do que o estipulado

e quanto mais tempo cedo

mais tempo tenho acumulado

cruzei a Ponte Buarque de Macedo

e para o rio não importa

se permaneço imóvel ou sigo para algum lado

o rio só me entende

enquanto permaneço calado

 

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