a esta regra convém
manter
cega a luz
até que o seu tato alcance
as frestas
espalhadas pelo corpo e
fuja
a esta regra convém
manter
cega a luz
até que o seu tato alcance
as frestas
espalhadas pelo corpo e
fuja
pouco resta antes do fim
e a esse pouco o fogo
depois as cinzas envelopadas
remetidas ao esquecimento
o que sobra do morto além do corpo
os pratos sujos
os musgos nos cantos do banheiro
um espelho partido pendurado na porta do armário
sapatos mofados
roupas tão puídas quanto a vida
páginas virtuais inacessíveis
senhas perdidas
conversas que nunca mais serão ouvidas
móveis obtusos
palavras e tintas
sentimentos que nunca mais serão demonstrados
e o silêncio pelo mundo repetido
com vagar demonstro o meu ódio
arranco as pétalas curtas
as longas me engolem
das casas plantadas entre os jardins
pessoas infladas aguardam do céu
um azul possível navegar
a umidade do rio não altera o meu corpo
que a contragosto me acompanha
desenhando poças em cada passo
em direção ao poço
em cujo pescoço a lua projeta os espasmos
do corpo pendurado
e o chão distante observa o pesadelo
por um ângulo sem medo
de acordar o instante
meu nervo ótico
desorganiza as flores
o jardim perde a raiz sem tropeçar
as cores inundam a hora
sem utilizar os cílios
ocupam um espaço sem agora
perfumes significam mais
paisagem
além da permitida
sem respirar é outra vida
meu nervo ótico
mais do mundo que meu
provoca um furo no escuro
deveria ter bebido
talvez até me embriagado
assim deixaria o meu corpo de lado
e ao ser descoberto abandonado
seria dado como morto
seria velado e enterrado
talvez até cremado conforme o combinado
deveria ter me embriagado
e ao retornar ao meu corpo ainda bêbado
por certo ainda cedo
não o reconheceria como a minha propriedade
talvez o enxergasse
como paisagem desprovida de gente
uma paisagem sem flores
onde as árvores queimassem
como se não sentissem dores
deveria ter me embriagado
assim não teria esse corpo
não estaria absorto no meio dessas palavras
esperando a minha vez
na fila da lucidez
Cruzei a Ponte Buarque de Macedo
muito bêbado
muito emaconhado
mareado
flutuando quase alado
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
chocado
dentro de um ovo carregado pelo povo
desarmado de concreto
nem cheguei do outro lado
do passado
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
com muito medo
mas já era tarde para trocar de medo
ou muito cedo
para saber que o medo não tem lado
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
enrabado pelo galo
empurrado por um falo que parecia anormal
mas pela cor e pelo cheiro
era apenas carnaval
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
carregando a minha cruz
muito antes de Jesus
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
na ponta dos pés
na ponta dos dedos
para não mostrar ao rio os meus segredos
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
carregado por parentes
dentro de um esquife indecente
com as alças cravejadas por meus dentes
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
um pouco mais cedo do que o estipulado
e quanto mais tempo cedo
mais tempo tenho acumulado
cruzei a Ponte Buarque de Macedo
e para o rio não importa
se permaneço imóvel ou sigo para algum lado
o rio só me entende
enquanto permaneço calado
uma primavera enfiada entre as rosas
fere as bromélias
eu te expliquei que as flores não se explicam
nem as palavras
mesmo assim as usasse para enfeitá-las
essas palavras nas malas
imaginando a primavera uma estação
a água esquenta depressa
e eu não tenho chá
tomo o que o calor oferece
tomo inconsciência
tomo um rumo
não ateio o claro fogo em vão
apenas me deixo derramar feito água
mas só percebo quando o vapor
assume a minha forma
a lua ao fundo antes da lua a árvore com seu vestido verde e sapatos escuros entre os cabelos da árvore a lua ao fundo ou a ...