terça-feira, 28 de outubro de 2014

BARULHO DE SAPATOS

alguns sapatos fazem barulho
outros não
o meu não tem motor
move porque se move
por acaso estou dentro dele
ou melhor
meus pés estão dentro dele
às vezes meu corpo acompanha
na maioria das vezes não
meu corpo fica longe
ouvindo barulhos de sapatos
podem ser os meus
ou os de outras pessoas
o meu não tem motor
ouço porque se move
ou é o barulho de outros objetos
e eu confundo com sapatos


PROTEGENDO CRIANÇAS

protegem crianças
com guarda-chuvas elétricos
mas esquecem de amá-las
a tomada do amor ficou perdida
entre as roupas da mala
o plugue do guarda-chuva é mais importante
e correm o risco na chuva
sem para-raios
pensam que protegem crianças
melhor deixá-las na chuva
cobertas de amor


terça-feira, 21 de outubro de 2014

POEMAS OTIMISTAS

detesto poemas otimistas
daqueles em que parece que a morte não existe
daqueles em que a dor é uma exceção
daqueles poemas que mencionam flores
como se elas não nascessem do estrume
daqueles em que a felicidade transborda
como se fosse um rio sem leito
detesto poemas otimistas
que não provoquem lágrimas de dor
ou preocupações com o mundo
detesto poemas iluminados
por luzes artificiais
irrigados por sangue de tipo incompatível
detesto poemas otimistas
que só conseguem ficar de pé
com o auxilio de muletas
detesto poemas otimistas
encharcados de perfumes baratos
ou levemente perfumados com perfumes caros
detesto poemas otimistas
que parecem estar sempre conversando conosco
mas não entendemos nenhuma palavra
detesto poemas otimistas
que tentam nos fazer rir
quando estamos sem dentes
que tentam nos fazer viver quando
estamos morrendo
que tentam nos fazer pensar
quando queremos apenas viver


PARADO PARADINHO


quem quiser correr
que vá por ali
eu vou ficar por aqui
parado paradinho
se o mundo quiser me pegar
que passe por aqui
se conseguir me alcançar



quarta-feira, 15 de outubro de 2014

ESCADA

antes de subir a escada
pensei  em tudo que senti
pensei que senti
eu não senti nada
parei porque a escada
interrompeu meu pensamento
meu pensamento era igual
ao caminho que percorri
a escada abriu a minha cabeça
melhor pensar sem sentir

ENCRUZILHADA

o encontro era aqui
mas o momento não era
ficou o meu corpo
que se perdeu da palavra

O SILÊNCIO AO REDOR

então resolvi escrever algo simples
para confundir um pouco
quem espera complexidade
em algo que não deveria
ter nenhuma complexidade
interrompo o silêncio da página
mas deixo o silêncio ao redor
deixo no olhar de quem tiver coragem de olhar para cá
alguma esperança de que ao final desse texto
deste texto de este texto de esse texto de es
deste texto
haja algum pretexto
para que algo realmente simples seja escrito
e com isso não consiga promover
a tão propagada necessidade de complexidade
em algo que não deveria ter


REGRAS

regra não tem preço
parece comida
pendurada num adereço
no começo erra
depois não quis menos
agora retina inacabada
engole o tom
da cala magra
regra não tem começo
empalidece instruída
ventilada num apreço
ao final era
e sempre queria mais
afora cortina abalada
esfola o som
da mala traga


terça-feira, 14 de outubro de 2014

ESCAVAÇÕES


primeiro apodrece o umbigo
por último a alma
e entre um e outro
tentamos preservar
tudo que será morto
alinhavamos parcerias com o tempo
pensando que o silêncio
é a concordância do tempo
prolongamos uma existência
desnecessária
cavando nossa presença no mundo
cavamos com as mãos
sem saber que somos os grãos
do mundo que cava mais fundo

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

AJARDINADO

pendurado no mundo
não fico
mesmo se eu soubesse
onde o mundo
fica pendurado
estiro meu corpo
por todo lado
meu poro escancarado
meu modo meu medo meus males
criando raízes
meus pelos abertos
confundido com flores
de vez em quando arrancados
enfeitam vasos lapelas
festas tristezas
meu corpo arrancado
do lado errado
me torna mais forte
que o lado certo



FUNDO DO POÇO

no fundo do poço
recolho meus ossos
sempre falta um pedaço


NA CABEÇA DA ESTÁTUA

um dia alguém vai dizer
que isso não foi suficiente
para mudar o mundo
eu tento fazer a minha parte
não deixando páginas em branco
procuro provocar
olhares mais generosos
do que as palavras merecem
por melhor que seja a palavra
o silêncio sempre provocará mais estragos
o que se passa na cabeça da estátua
ou na cabeça do homem
que esculpe a estátua
nenhum discurso vai chegar perto

ESCORREGANDO

não preciso tocar na vida
para provocar ondulações
basta respirar e a vida se abre
e me solta dentro dela
como bem entende
escorro parecendo água
e o meu corpo sem pele
vai deixando marcas
por onde passa


DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...