quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O LIVRO QUE NÃO LI

terminado o ano
e não consegui ler nenhum livro
talvez por isso as palavras me escapem
estão por aí
entre as pregas dos gritos
entre as nuvens que cobrem o tempo
estão por aí as palavras
e você aí talvez atento ao que digo
libere essas palavras
fale-me tudo que já sei
em qualquer idioma
todo grito é igual
todo sussurro é confundido
com uma idéia insossa
ou então não diga nada
releia em voz alta algum livro que não li

O POEMA, O POETA E OUTRAS CONSIDERAÇÕES

o poeta é menos importante que o poema
o poema sobrevive sem ele
porém o poeta não sobrevive sem o poema
sem o poema o poeta não tem a menor importância
o poeta sem o poema
lembra um pássaro que não voa
o poema sem o poeta
lembra um vôo sem o pássaro

RUA

quem conhece
o outro lado da rua
não atravessa
rega a flor
espera que o sol
ilumine os dois lados
espera que a rua
seja apenas um caminho
a ser ultrapassado

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

EMOÇÃO

a composição da emoção
começa na beira de um rio
caso não exista o rio
serve a beira do olhar
lágrima não sabe
que não é rio
mas sabe
onde vai desaguar

COR

antes da cor
alcançar a flor
existe a poesia
e por não entender
sua cor
expõe incolor
agonia

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O AMBIENTE DA FELICIDADE

o ambiente da felicidade
não comporta passarinhos
não há árvores
para construir ninhos
no ambiente da felicidade
não cabe água corrente
porque não há
leitos suficientes
no ambiente da felicidade
alguém procura por outro à toa
no ambiente da felicidade
só cabe uma pessoa

FOTO

o mar ao fundo
pequeno detalhe azul
entre o meu olho
e o que realmente
devo enxergar

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

TÚNEL

não precisa
entrar no túnel
para saber
que é escuro
o túnel do cego
é mais puro
porque não existe
o outro lado
aos que enxergam
tudo é mais claro
quando o túnel termina
não precisa
entrar no mundo
para saber
que é escuro
o mundo do cego
é mais puro
porque não existe
o outro lado
e os que enxergam
outro lado no mundo
são os mais cegos

SOBRE AQUELE ASSUNTO

repito
já falei sobre esse assunto
repito
já falei sobre esse assunto
se por acaso
algo não ficou bem esclarecido
ou não foi devidamente esgotado
voltarei a esse ponto
no momento devido
por enquanto repito
já falei sobre esse assunto
repito

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

RARO

ser difícil é raro
uso o corpo
como anteparo
sob ele tudo
que o torna raro
enxergam pele
cabelos lágrimas e medos
não sabem da alma distante
escondida no labirinto do sangue
e assim todos os dias
disfarçar a hemorragia
é o maior segredo

MINA

a poesia não me salva do silêncio
por ele
começo a cavar
encontro ouro
encontro água
não consigo me encontrar

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

CANCERÍGENO

desenvolvo câncer
na palavra
quando interrompo
o silêncio
da página

NÃO COMIGO

se a morte pensa
que vai mexer comigo
está enganada
pode mexer com meu corpo
comigo não
pode parar meu coração
mas não vai parar
minha razão

W

encontrei uma data com w
quase inexistente no calendário
tal qual um peixe
fora do aquário
procuro ar
numa letra
difícil de respirar

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

PASSO SOLITÁRIO

teu coração não
bate por mim
quando ele parar
não será o meu fim
deixarei teu corpo
pelo caminho
seguirei conversando
mesmo sozinho

PORQUE POESIA É AR

quando o oxigênio
não alcança o cérebro
uso as palavras
e enquanto o cérebro
permanece paralisado
escrevo poemas

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

CAMINHOS

se quiser mentir
procure um surdo
se quiser ouvir
procure um mudo
se quiser uma testemunha
procure um cego
se quiser se iludir
leia um poema

MAR

mar vasto mar
quem te alagou
não cogitou chorar
nem acredites ser
todo esse sal suor
mar vasto mar
não passas
de um vasto urinol

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

ESCONDE ESCONDE

a felicidade é mais fácil na infância
porque a morte é longe
e não fabrica brinquedos
quando crianças morremos de mentirinha
e a vida nos faz de brinquedos
até morrermos de verdade
fechamos os olhos
enquanto os outros se escondem
para sempre

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A POESIA VAI TE PEGAR

a poesia vai te pegar
sem usar as mãos
vai te pegar pelo pé
e continuarás caminhando
vai te enterrar
e continuarás voando
a poesia vai te pegar
quando menos esperar
nem vais saber que é poesia
isso que te prende
nessa página

DESPEDAÇADO

quem quer se dividir
procura o sonho
não espera que a vida o despedace
não há sangue nos cortes do sonho
e a dor fica pendurada
do lado de fora
a vida nos desperta
tudo volta ao seu lugar
e recomeça o eterno despedaçar

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

VISÃO DO TOLO

o tolo não enxerga tudo
nem todos enxergam o tolo
o tolo enxerga quem não o enxerga
inútil gesticula
quem o enxerga não vê os gestos
só enxerga o tolo
quem acompanha os seus gestos
imagina os gestos sem o tolo
quem não enxerga o tolo
também não enxerga os gestos
o tolo e a rua são a mesma coisa

ESCOMBROS

esquecer o mundo
até perdê-lo
e reencontrá-lo
sob as palavras

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

CAMINHANDO SOBRE AS ÁGUAS

era de pedra
o mar onde o outro caminhava
seus companheiros enxergavam água
e se afogavam
assim também ocorre com o poema
enquanto caminho sobre o silêncio
enxergam palavras
onde leitores e imagens
morrem afogadas

IMPALPÁVEL

desmistificar o silêncio
torná-lo intocável
mostrar-se mais que palavras
talvez eu mesmo
gesticulando o impalpável

SENTINDO MENTES

se eu conseguir
com as palavras
o que as imagens perderam
talvez eu sinta
a tua mente
perdida no silêncio

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

FIM DO TÚNEL

a luz apagou
o chão não aceita o passo
a pele não aceita o corpo
o sangue não aceita o coração
o ar não aceita o pulmão
a luz apagou
tudo vai fazer sentido
algo vai ficar parecido
nada vai ultrapassar o permitido

MANHÃ EM ESTOCOLMO

estou calmo em Estocolmo
não sei onde terminam meus ossos
e onde começa a neve
não sei do meu corpo
misturado aos destroços
de silêncios que erguem
músculos em forma de monumentos

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

PEDAÇOS DE LUZ

surgem as palavras
como pedaços de luz
que interrompem as sombras
e claras
formam outros caminhos
que os cegos devem seguir

ENQUANTO RESPIRO

a cadeira voltada para a rua
embora a janela fechada
a paisagem me imagina
nem me conhece ainda
não imagino a paisagem
espero que o ar me abandone

FAXINA

finjo
como se soubesse
o que os outros sentem
pessoas lembram objetos
sentadas nas prateleiras
recolho uma a uma
retiro o pó
e a tinta que fica
na flanela
lembra a cor
de algum sentimento
que não me ocorre
no momento

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

ONDE ESCREVO O MEU NOME

porque inscrevi meu nome
não quer dizer que eu esteja
estive em muitos lugares
onde nunca souberam o meu nome
noutros meu nome foi pronunciado
e eu nunca estive presente
o nome à pessoa não é um laço
um fosso cujo remédio
qualquer palavra é inútil

AMAMENTAÇÃO

a glândula mamária
pensava que me alimentava
eu soprava meus medos
e o anticorpo materno
desfazia-se em leite

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

ABDÔMEN

o abdômen da palavra é a poesia
como é poesia o que sobra nos sonhos
e o que sobra nunca sabe inacabado
sempre sobra medonho
sobra um tórax solitário
que pensava fazer parte do barulho
pensava porque batia
batia por puro orgulho

ALGO PARECIDO COM UM JARDIM

a borboleta excluída
pousa no poema
o poema lembra uma flor
na alucinação do leitor
o poema lembra um jardim
quando chega ao fim

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A POESIA NÃO SERVE PRA NADA

a poesia não apaga incêndios
não grita quando ferida
não sabe os gestos das árvores
não ergue homens nem afaga
a poesia não aparece
nem quando o silêncio cresce
deveria estar aqui
restaram só as palavras

PELA MINHA CABEÇA

mantê-la afastada dos sonhos
é o máximo que posso fazer
pela minha cabeça
o mínimo
é mantê-la sobre os ombros
com se eu pudesse contê-la

PAISAGEM SUÍÇA

o silêncio da Suíça
corta a superfície do poema

como se fossem paisagem
os cães se movem
as crianças não morrem

a pele clara de Zurique
dá a entender
que o resto do mundo
é mentira

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

PARA ONDE VOU

repouso meus pés
enquanto os suspendo
entre um degrau e outro
ergo meu corpo até o cume
cumpro o caminho
como se soubesse
os lugares onde nunca estive
permanecem
como se eu não existisse

COMA

o aço cirúrgico
corta o ausente
a fala é de sangue
abertura da carne
entre o campo
e o óculo
a vida pingando
enche aos poucos
os tubos da morte

terça-feira, 29 de novembro de 2011

ONDE GUARDAM AS LÁGRIMAS

já morei no lugar
onde guardam as lágrimas
é sal quando toca a boca
sabe-se amarga
quando sabe que a vida é pouca
perdura no rosto
o caminho que mata

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O QUE O TEMPO COME

o tempo não come ninguém
as pessoas mastigam o tempo errado
mordem de lado
deixam à mostra
temperos que o tempo
finge que gosta

NOTURNO EM MANHATTAN

os prédios enrugam
a pele de Manhattan
seu suor é noturno
no escuro
lembra crianças de coturno
são de pele seus passos
seu idioma é fluente na lua
as sombras despedaçadas
formam ruas

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

CONTRA

ser contra não dói
se houver uma lágrima não será de dor
lenço de papel não guarda lágrima
no máximo rasura a calçada
no mínimo torna a paisagem
embaçada por um breve momento

CÉU DE MARTE

parecia escorrer da pele
e a pele corria desaguada
ficaram os ossos
os nervos expostos na bienal
moviam-se ao som das máquinas fotográficas
todo poder obtuso da arte
pendurou meu corpo
no céu de marte

PALAVRAS

estavam aqui
fugiram com a minha presença
se alguém me fala em algum lugar
serei pouco entendido
as palavras que tenho
estão comigo amassadas
entre o silêncio e a fala

ESPELHO

eu estava sem olhos quando me viram
ao fundo a paisagem me mostrava agitado
eu parecia o vento porém sem asas
mesmo assim planava
entre a superfície e algo parecido com a calma

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

AQUÁRIO

o peixe sonha um mar infinito
acorda contido
arrasta o aquário preso ao calcanhar
sua casa sua prisão
suas guelras acenam em vão
a esperança não tem barbatanas
repousa afogada rente ao chão

SIM NÃO

quem sempre diz sim
perde a pele
quem sempre diz não
não tem pele
quem quer sentido
prepare o ouvido
para despelar
ouça os pelos
do sim do não
ou do calar

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

VÓ MARIA

a agulha cruza o tecido
prende um lado ao outro
o tempo fica solto
cai de um lado e do outro
separa corpos
nas pontas dos medos
chuleando sentimentos
os botões não encontram as casas
tornam-se flores
e perfumam silêncios
como se tivessem asas

PARASITA

o sangue retirado
da veia do poeta
enche de palavras a seringa

MINHAS PERNAS

sei que sigo as minhas pernas
e elas se movimentam
em frente
chegam ao lugar onde não deveriam
e eu estou com elas
não questionam minhas pernas
no entanto me olham
como se minhas fossem
mas até que eu prove
que não temos nenhuma ligação
já estaremos todos mortos no chão

CAVALO SEM SOMBRA

parecia pura a sua crina
mas era um fardo quando engolia
parecia escura sua cauda
mas era espinhos nas ancas
trotava sem tocar o fundo
cavalgava sem se tocar
disparava se houvesse mágoas
relinchava se ouvisse águas
sob ele seu cavaleiro aos pedaços
a inútil sombra sobre o cadáver
a guia misturada à relva
o sol a pino na testa
não se adestra o destino

CARÍCIAS PÚBLICAS

quando encontrar a pele
separe dos outros objetos
acrescente às válvulas glândulas
mucosas
lavas de dejetos
mostre o que cobre a mão do lado de fora
transforme o gesto inútil
na melhor coreografia
engula o sacrifício
mostre-se anônimo
e embora aparente um ar tristonho
alegre-se por dentro com o malefício

terça-feira, 22 de novembro de 2011

SE

se for pra dizer qualquer coisa
melhor dizer
se for pra não falar nada
melhor falar
se for pra não ser percebido
melhor ser
se for pra calar
melhor sair daqui
se for pra se emocionar
procure outro lugar
se for pra perder tempo
encontrou
se acha que é poesia
achou

ESCALA

a música escala
as paredes do tédio
usa garras
parece humana
a música nunca morre
mas quando morre
não apodrece
vira casa

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O QUE MEUS OLHOS

vicio meus olhos
com imagens falsas
olho para o homem
e enxergo esperança
olha para uma flor
e enxergo poesia
eu me exponho aos olhos do mundo
esperando que ele também esteja viciado
sou desse modo que me apresento
pareço sentindo tudo
mas disfarço

ALONGAMENTO

estou perdendo a noção de espaço
por mais que me dobre
minha alma se encolhe
meu corpo se abre
bato com a cabeça no fim do mundo
meu pé o infinito ultrapassa
não caibo no que sinto
o que sinto é a razão
porque minto

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

MEIAS NOVAS

instruir os pés a seguir o corpo
instruir o corpo a seguir os pés
como se fossem diversos
instruir as palavras a seguir o corpo
instruir o corpo a seguir às palavras
como se fossem de versos

DESGOSTOS

as coisas que o morto gostava
não morrem com o morto
as pessoas que o morto gostava
não morrem com o morto
o morto não mata a morte
mata o espaço onde existia
e as coisas e as pessoas
das quais gostava
nunca ocuparão esse espaço

MURO DE GRITOS

fiz dos meus gritos muros
nada ultrapassava
dor ou medo
quem sabe o outro lado
sabe o segredo

CALENDÁRIOS

as perdas de dezembro
não ultrapassam dezembro
assim como as perdas dos outros meses
não ultrapassam cada um dos meses
tudo dentro do seu tempo
e mesmo que não usássemos
esse calendário
a perda ocorreria noutros meses
noutros dias de outros anos
a perda independe do tempo
não adianta querer remendar o calendário
não existe cola que faça isso
pra sempre naquele dia
ficará aquele furo

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

FEBRE

a febre sobe de elevador
no meu corpo parece escada
o calor desaba um rio
em que eu pensava
ser a parte mais clara

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

FEITO ÁGUA

estou mais preocupado
com o meu corpo
do que com as palavras
ele se dissolve em água
quem bebe o meu corpo
não me cospe
engole como se fosse palavra
quem me come
não me fala
deglute como se fosse água

ENTRE O INTESTINO E A PÁGINA

a água retida
entre o intestino e a página
as palavras submersas
não pedem socorro
tornam-se peixes
com sorte tornam-se água
e permanecem retidas
entre o intestino e a página

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

ALEGRIA

alguns motoristas de terno
ganham menos que alguns sem terno
artistas não ganham
a mesma coisa
uns morrem de tédio
outros sem remédio
uns morrem em palácios
outros na rua
alguns morrem de tristeza
os sem sorte morrem de velhice
o poeta não sabe por que escreve
mas sabe por que não apaga
o poeta não é triste
triste é quem encontra alegria na poesia
a poesia não me traz nenhuma alegria
eu sou alegre sem poesia

MÚSICA

pensei em usar essa música num poema
mas não consegui representá-la
um poema é mais silêncio que palavras

DESASTRES

uma revoada de pombos
interrompeu o meu flerte com a árvore
a vida interrompe desastres

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

PARECIDO COMIGO

sei que não vai ser necessário
arrastar meu próprio corpo até o abismo
o precipício mostrando-se mais parecido comigo do que eu
as digitais precisas combinando com as minhas

sou eu o abismo
sempre que me abro dessa maneira
os ventos arrastando os grãos
os vãos abertos são a minha respiração
o aumentativo de tudo é a solidão

DEJETO

dizem que a chuva muda tudo
não mudou minhas palavras
a água não traz palavras novas
tristeza agonia
meu corpo engolido pelo canal
desemboca na boca do sol
que se engasga com a minha
insignificância

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

PESO

todas as coisas
que você não sabe mais
o que significam
mas mesmo assim as utiliza
como um peso
sustentando o silêncio
que insiste em voar

MATILHA

quando os cães vieram
eu não estava preparado
e os que estavam preparados
não sabiam que viriam os cães
preparavam-se para a colheita
e os cães vieram antes dos frutos
agora ancinhos e fardos
recolhem corpos
dos cães desfigurados

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

ISSO ACUMULADO AO REDOR

a exemplo da ausência
os cabelos e as unhas
continuam crescendo após a morte
ninguém vai abrir o caixão
para aparar as unhas e os cabelos
nem vai aparar a ausência
que se acumula ao redor
formando novelos

ENGRENAGEM

uma roldana
não se pergunta
o que está fazendo
numa engrenagem
se ela for pensar
para tudo
então
embriaga-se de graxa
e continua o movimento

ABRAÇOS

eu sei que os abraços
não são eternos
por isso nunca trago o meu corpo
isso que tocas
é apenas a sombra do meu sonho
também pedirei
que me esqueças
quando nascer minha cabeça
enquanto isso
movo precipícios
sob os oceanos
os navios não sabem
dos meus planos

ASAS

é mais fácil falar da queda
quando não se tem asas
o céu se espreguiça
com mais calma
quando se tem o azul na alma
minha alma feita de penas
converteu em nuvens
minhas omoplatas
o chão que me pisa
de baixo pra cima
espreme o silêncio pendurado
sem rima

terça-feira, 8 de novembro de 2011

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

MELHORES DEPÓSITOS

não guardamos pessoas nos livros
guardamos em armários
calendários hospícios asilos
hospitais catacumbas
guardamos palavras nos livros
para mencionar a lembrança de alguém
usamos palavras
as pessoas incham quando morrem
depois explodem e fragmentam-se em ossos
palavras não incham só explodem
e os seus fragmentos não são de ossos

RESPIRAÇÃO

estou cansado de respirar
aliás estou cansado do ar
esse ar assombroso que não me abandona
já reduzi os espaços
retirei os pulmões a narina
esse ar me circula
como se fosse minha sina
infla meus movimentos
infla minhas palavras
são de ar essas palavras
que parecem água

PERDAS

o modo de perder
é mais relevante que a perda
perder verdadeiras posses
nunca perderei o amor
nunca perderei a dor
nem tenho essa rima
tenho uma agonia
parecida com a poesia
será difícil perdê-la
foi mais fácil obtê-la
aprender a morrer
é o melhor modo de
perder a poesia

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

TODO SENTIMENTO

algumas coisas não se acertam nunca
nunca serei a pele de alguém
nunca serei minha pele
palavras suturam discursos
mas as cicatrizes não se apagam
o silêncio rompe os cortes fechados
melhor deixar assim
tudo aberto
todo mundo é igual por dentro
alguns não entendem os sentimentos
tudo é dor fique certo

PÁGINA SONORA

pontes e abismos
esses pequenos objetos
e suas alavancas
reentrâncias
e o modo de encaixar as palavras
se eu soubesse
não estaria aqui agora
tornando essa página sonora

MANHÃ QUASE CALMA

mostrou-se tranqüilo
apesar da altura
os cabelos em desalinho
a gravata dando voltas no pescoço
o sapato direito quase caindo
o asfalto ainda molhado da chuva noturna
poucos automóveis ainda
poucos transeuntes
e apenas o seu corpo de encontro ao solo
o filete de sangue
interrompeu o caminho das formigas
e o corpo interrompeu a manhã
que parecia calma
até aquele momento

SONHANDO COM BOCAS

palavras pontiagudas
intragáveis
invadiram a minha boca
enquanto eu bocejava
eu queria um sono
agora tenho sonhos
sonho com uma latrina
onde eu possa
cuspir essas palavras
sonho com outra boca
parecida com a minha
e diferente nas palavras

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

ESPETÁCULO

aos domingos
artistas cansam o público
a sensibilidade sempre corrói
a parte branca do sonho
os artistas descansam
onde as palavras dormem

terça-feira, 1 de novembro de 2011

FINADOS

deixaram apenas o meu rosto do lado de fora
as flores cobrindo o restante do corpo
nem percebem o meu hálito
nos sopros que tenho guardado
para cada um dos talos
meus movimentos por dentro
despertam outros sentimentos
não sei se durmo
não sei se falo
acho melhor adormecer
até apodrecer

PLANANDO

quando a lucidez foi embora
eu estava no meio da rua
empinando pipa
subi pela linha até alcançá-la
ela fingiu não sentir
o peso do meu medo
permaneceu misturando
suas cores ao azul do céu
esquecemos da noite
do mundo pendurando lá fora
fiz um chapéu do escuro
nunca mais fomos embora

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

MANEIRA DE ENXERGAR O MUNDO

minha maneira de enxergar o mundo
não uso os olhos
tenho pouco tato
pareço um morto estupefato
respiro desatento
o que sinto é puro
vento
desmanchando os cabelos
do intestino
grosso modo de enxergar o mundo
não uso os outros
tenho poucos traços
pareço um cadáver absorto
inspiro lento
o que vejo é um furo
desalento
desmanchando os pelos
do intestino
delgado

FOSSE

se eu fosse o mar
seria só espuma
se eu fosse o ar
seria pó
se eu fosse amar
seria só

DIZER

estou esquecendo palavras
às vezes tenho algo a dizer
mas esqueço as palavras
às vezes tenho as palavras
mas não tenho o que dizer
às vezes tenho palavras mas não tenho poemas
às vezes tenho poemas mas não tenho palavras

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

ABISMOS

abismo com dobras
uma escada

abismo sem certezas
um fosso

abismo sem paredes
um alvoroço

MAR NO COPO

colado à parede
sob percevejos
a foto do mar
dentro do copo
bebo o mar
quando quero ter certeza
sinto o mar
quando me solto

PICOTES

em tempo
não necessito de assombros
portanto nada de negar meu espanto
por enquanto rasgo o meu silêncio
e os picotes se acomodam
em compêndios

RELÓGIO

não se preocupe
mesmo sem certeza
vai ser assim
não pense que pensar vai mudar alguma coisa
não pense
não se iluda com a curva do relógio
o tempo tem um ponto
bem no meio

SUSPENSÃO CORPORAL

os ganchos que sustentam o meu corpo
são feitos de sombra
iguais a esses ganchos
que sustentam essas palavras
sob nós um estranho sangue se mistura
às nossas secreções
algo parecido com nossas emoções
sendo mais fáceis

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

ENCAIXOTADOS

o tempo nos jogou
nessa caixa sem fundo
a felicidade não dá tempo
o fundo da caixa é o mundo

TERMINAL

a poesia é a
representação gráfica
do câncer
alguns têm cura
quando descobertos no início
é impossível descobrir
a poesia no início
a poesia não tem cura
é inoperável
quem descobre a poesia
descobre o fim

terça-feira, 25 de outubro de 2011

POEMA PARECIDO COM ALGUÉM

alguns poemas lembram pessoas
não deveriam
poemas devem lembrar palavras
imagens
silêncios
espero que não se lembrem de mim
ao ler este poema
lembrem das palavras
das imagens
dos silêncios

MAIS UM ANIVERSÁRIO

todo mundo fica um pouco otário
quando faz aniversário
a festa finge que disfarça uma morte iminente
a luz que traduz os dentes
quase se apaga
acende um lírio no ilusório
e
mesmo sorrindo
não dá pra lacrar o buraco
por onde o tempo vai se extinguindo

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

PLANTA

rego a planta dos pés
pisando o mundo
é de água onde passo
é de sede o meu passo
a raiz dos meus pés
não tem fundo

TÉDIO

não acontece absolutamente nada
o tédio cria músculos na insônia
o sol arrasta a noite pelos cabelos
alguns fios escapam e cobrem o meu rosto
meu corpo não se aprofunda
quer ter passos onde não há piso
meus sonhos são dos outros
e nem preciso
cabeças alheias ocupam meu pescoço
minha pele se sustenta sem ossos
arroto o gosto do mundo
e não me dou por satisfeito
quando tenho janelas
não tenho olhos
quando tenho olhos
não tenho paisagens
são miragens 
a minha imagem
e semelhança

LIMPO

a pessoa mais limpa do mundo
sou eu dentro do espelho
fora dele
bóio entre os detritos
mergulho nessa superfície
pensando ser outra pessoa
dentro do espelho
ou fora dele
repito os mesmos gestos
não repito os pensamentos
os detritos marcam a minha pele
as cicatrizes o espelho expele

TRANSPARÊNCIAS

o outro não é transparente
mas o outro age como se fosse
as veias dos seus sonhos
o sangue por fora dessas veias
o sistema linfático carregando suas sombras
seus segredos de infelicidade e medo
ele pensa que podemos ver tudo isso
e o seu rosto com um aparente sorriso
aprofunda o vão já carregado de água salobra
o mecanismo do abraço falido
é substituído por gritos encardidos
também agimos como se fôssemos transparentes
lançamos nossas tentativas de sorrisos
em meio às lagrimas
e o outro entende absolutamente tudo ao contrário
como também não entendemos

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

BRINCAR DE TEMPO

o espaço
que uma criança ocupa
não tem retas
é curva a atmosfera
que a abriga
quando dobra
o tempo que fadiga
mostra o fruto
do adulto
que a carrega

O IDIOMA

esse idioma é difícil
toda palavra
perturba qualquer sentido
o silêncio pensado
é um motivo
mesmo feito agora
esse idioma
transforma tudo
em ruínas
lá fora

MEU VENENO

eu te amo
como quem morde
a própria morte
e o veneno
que inoculo
torna o mundo
a parte da chuva
mais forte

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

DA MENOR IMPORTÂNCIA

eu pensei entender a poesia
depois entendi que a poesia
não é pra ser entendida
pensei na poesia salvando o mundo
depois descobri que a poesia
não é deste mundo
pensei na poesia
como a melhor parte da infância
com o tempo descobri
como era grande a minha ignorância
na verdade a poesia
não tem a menor importância

SENTINDO POEMAS

a primeira vez que senti um poema
nem pensei que estivesse sentindo
alguma coisa se abriu por fora
e me tornou o centro
alguma coisa se mostrou por dentro
como se eu não estivesse sentindo
a minha alma se abrindo

RESTAURAÇÕES

a espátula retira
as camadas de tinta
a poesia retira
as camadas de silêncio
a morte retira
todas as camadas

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

PARTIR

melhor não falar nada
e sentir tudo
chorar de madrugada
no escuro
partir
como partem as palavras
erguendo muros

FICAR

ia falar
mas não falou
ia sentir
mas não sentiu
ia chorar
mas não chorou
ia partir
mas não partiu

PAISAGEM INÚTIL

inútil paisagem
na janela
a nuvem esconde a lua
só pra ela
a lua cheia
sábia de espanto
mais inútil que a paisagem
é o meu canto

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A MÁGOA PARECE UM RIO

passei na rua em que tudo aconteceu
todas as portas estavam fechadas
ninguém se lembrava de mais nada
as pedras que receberam o choro
pensavam que era uma chuva passageira
hoje submersas formam o leito do rio
as pedras não sabem o sabor da água
pensam estar num rio
estão num mar de mágoas

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A PARTE FLÁCIDA DO SONHO

aos que carregam o meu corpo
recomendo deixar o amor guardado
entre o que entendo e o plástico
e o resto deixe solto
até porque não haverá
onde guardar
as partes flácidas do sonho
cobrirão onde eu deitar

PARA ENTENDER O DESERTO

quem entende de deserto
entende de miragem
quem entende de tristeza
entende de coragem
sempre pensei que era miragem
esse deserto
minha lágrima um oásis
que não mata a minha sede
eu não entendo de desertos
eu não entendo de tristezas
minha coragem
tornou o mundo uma miragem

PAPOULAS

a papoula estagnada
interrompendo a cerca
imune ao vento
o pólen misturado ao silêncio
como uma primavera sem cor
o verde ao fundo
parecendo o grito
de um homem que acabou

TEMPOS MODERNOS

a lua
usa a televisão
para entrar em casa
antigamente
não precisava

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ORGASMO

era como se eu
ali não estivesse
e o meu corpo
esquartejado
mesmo completo
depois de costurado
formasse o corpo
de outra pessoa

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

FINGINDO VIVER

a melhor forma
de fingir estar vivo
é mostrar-se sábio
parecer saber de tudo
inclusive dos motivos do luto
saber que a morte
é apenas a metade
do que aconteceu antes

O QUE FIZERAM DOS MEUS SONHOS

depois do que fizeram com meus sonhos
restou-me a poesia
mas ninguém dá importância à poesia
a consideram uma atividade supérflua
desnecessária
mesmo quando encanta
ou quando machuca
é tão pobre que se utiliza de palavras
mas um sonho é mais complexo
requer cabeça e rumo
justamente o que me retiraram
por isso fiz da poesia a minha cabeça
fiz das palavras o meu rumo

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

TREVA

o sonambulismo da treva
surpreendeu o dia
não a mim
conduzo-me no escuro
como se o retirasse
de cada passo
o sonho da treva
é cercado de muros
de meus ossos escuros
o alicerce
poderia transpô-los se quisesse
porém prefiro cobri-lo
como se a luz me apagasse

PARA SER SÓ

para ser só basta nascer
o outro sozinho
vai te encontrar no caminho
colar a tua pele à dele
roçar pensando tocar a alma
como se a alma se deixasse tocar
o gozo não vai ser dividido
o choro sairá por cada olho
o abraço não formará um corpo
nunca será a mesma a emoção
nem o pensamento
ou a secreção
para ser só
basta nascer
e alguma coisa entre este momento
e o último
vai te deixar pendurado pelos sonhos
um gancho perfurando a alma
a solidão escorrendo pelos furos
para ser

basta

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O MECANISMO DOS PÁSSAROS

às vezes entendo
o mecanismo dos pássaros
ao ver a tarde
molhada por seus passos
quando poderiam estar
suspensos pelas asas
sujando o mundo
como se fosse a sua casa
entendo a rima
do ninho com a fala
escondem os ovos
como se escondessem suas mágoas

O NOME DAS COISAS

escolha um nome
para a coisa que sente
qualquer nome
ou não sinta mais
e não nomine
escolher um nome
para o que se sente
tira o que sente
de dentro
para a beira do olhar
olhe para o nome
da coisa que sente
esqueça o que sente
e sinta o nome
ou esconda o nome
daquilo que sente
longe da beira do nome
e sinta o que sente
sem olhar

ANIVERSÁRIO

quando havia festa de aniversário
no colégio estadual
as bancas eram encostadas na parede
e as cadeiras encostadas nas bancas
voltadas para a sala
ao centro o birô da professora
coberto com uma toalha de plástico
sobre ela o bolo confeitado
biscoitos pratos de papel
garfinhos de plástico
e jarras de suco feito de um pó solúvel
a coordenadora e a diretora presentes
tornavam tenso o ambiente
todos ficavam sentadinhos
com as mãos sobre os joelhos
observavam uma festa
que dificilmente teriam em suas casas

terça-feira, 4 de outubro de 2011

AS ÁRVORES DO CAMINHO

as árvores que me viram passar
já me esqueceram
eu também as esqueci
se houve alguma lembrança
ficou impregnando este poema
não há verde nem há homem
não há morte nem há vida
apenas as palavras esquecidas

PAPEL DE POEMA

poemas são palavras de papel
quem se fere com poemas
não tem pele
pensa que o sofrimento é sangue
em vão usa a lágrima como torniquete
no papel do poema não há palavras
triste de quem as lava
usando o sangue como lágrima

EUROPA

o que me faz frio
não tem volta
sua clara costa
perdeu minha vista
chego ao cume
sem usar a cabeça
a nuvem cobre
o meu rastro
para encontrar meu caminho
não me aqueça

GOLA

o tempo ao redor do pescoço
feito uma gola
às vezes aperta
às vezes afrouxa
o tempo quer
ser mais medonho
do que aparece no sonho
quer na pele
suas digitais
quer a paisagem dos olhos
que não enxergam mais

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

OSSOS DESMONTADOS

dizem que sou perfeito
nunca me viram com os ossos desmontados
é fácil julgar o conjunto
quando este não possui detalhes
na briga entre a minha lucidez e o haloperidol
eu sempre levo a pior
catatônico ensaio uma sombra sobre o mundo
mas a baba que escorre das palavras
denuncia que ainda vivo

MUNDO IMPERDOÁVEL

não acredito nos dias
como me mostram
a dor que sinto é tatuada
vista no escuro
forma um estranho desenho
aos poucos vai moldando às mãos de um cego
esse mundo imperdoável

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

PAZ DO VULCÃO

o mastro da bandeira
enfiado no vulcão
todas as guerras juntas
não formam uma margem
o rio que sobra
não comporta o vulcão
recebe o calor e evapora
nem tudo que evapora está em paz
nem tudo que apavora
não tem paz

POESIA REDONDA

a poesia vista de cima
nem precisa de rima
lembra uma agonia
sem quinas
redonda
rola pelo mundo
não cabe em todo canto
mas vai a qualquer parte

PASSADO DO FUTURO

contaminei o mundo
com os meus filhos
mas não me sinto culpado
gerei olhares novos
sobre um mundo velho
tudo que eu disser agora
será usado contra mim
no passado

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

TAMANHO EXATO

tudo é imenso
quando somos crianças
o medo
o tempo
os outros
a esperança
depois tudo fica
do tamanho exato
do tamanho onde não cabe
os nossos sapatos
onde os nossos vultos
parecem de adultos

POR MIM

dizem que nasci
por mim
não me mereço
vou até
onde me guardo
desapareço

REPRODUÇÃO

reproduzir a solidão
num papel sem poro
a tinta que não fixa
escorre pela página
e forma esse chão inesgotável

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

SER HUMANO

carne cercada
de emoção
por todos os lados
às vezes só emoção
sem carne
às vezes só carne
sem emoção

TEMPO DE VOAR

passarinho
nunca perde o vôo
o tempo
não faz parte
dessa arte
o tempo
nunca canta o vôo
o tempo
sempre é tarde

terça-feira, 27 de setembro de 2011

SER LEVE

o copo de câncer esfria ao lado do corpo
a mão tenta alcançar o furo
mas permanece presa ao corpo no escuro
a morte esqueceu de ser leve
quando voa carrega pessoas
como se fossem perfumes

NUVEM DE SILÊNCIO

a poesia move nuvens
move a nuvem do silêncio
revela o escombro das palavras

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NINHO

o amor é um pássaro cego
que constrói o ninho
num abismo de espinhos

DE VIDRO

o vidro é livre
porque é transparente
o mesmo não se pode
dizer das palavras
embora transparentes
estão presas ao que comportam
as idéias guardadas no seu interior
tornam o silencio pior

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O IDIOMA DAS ÁRVORES

as árvores não calam
por isso permanecem belas
falam o idioma das esferas
mesmo quando estão quadradas
falam o idioma das estrelas
mesmo quando estão apagadas
as árvores não calam
por isso permanecem
penduradas no dia
falam o idioma da poesia

RALO

ainda não me amarrotou como devia
ainda sobrou o reto
onde guardo o teu calo
como quem desmonta um cavalo
peça por peça
começando pela crina
terminando pelo ralo
onde me escorro
onde me entalo

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DE OLHOS FECHADOS

não abra os olhos
talvez o sonho te perca
e o corpo
parecido com o grito que forma a boca
não encontrará o caminho de volta
não abra os olhos
talvez a paisagem ainda não esteja pronta
e os ossos à mostra
não espere o corpo ser formado
não abra os olhos
talvez o olhar não esteja pronto
e tudo
que poderia ser visto
mergulhe teu corpo no escuro
não abra os olhos
talvez nem haja sonhos nem paisagens nem olhares
antes é preciso ter certeza
que os olhos são teus
que são tuas as imagens
que a vida não passa de uma miragem

NÃO SOU O SOL

minha mandíbula perdida
no meio do sorriso
o rosto perdido
ao redor do sorriso
pensavam que era o sol
minha cabeça girando
ao redor da terra
apesar do fogo
apesar do calor
o verde abre caminhos sem pressa
não tenho cabeça pra isso
nem sei pra que tenho cabeça

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

VISTA DO MAR

o mar visto de cima
lembra pegadas
de um corpo feito de água
o mar visto de baixo
lembra a escolha
de um corpo desfeito
o mar revisto
revigora o cisto
do aquário

CAPA

não precisei falar
para que você entendesse
o que eu queria dizer
o combinado era
dizer tudo sem usar palavras
mas o que deve ser dito
requer capas
nem toda idéia
aceita qualquer chuva
mesmo que a capa seja furada
como as palavras

terça-feira, 20 de setembro de 2011

TARDE NUBLADA

o céu distorce a tarde
tossindo nuvens escuras
entre as árvores
não enxergo a tarde

só enxergo o escuro
a tarde me encolhe
entre os seus muros

PALAVRA SECA

eu tinha uma palavra seca
pra te dizer
mas resolvi dizer
só a metade
resolvi dizer
a parte seca da palavra
e a parte seca da palavra
é a verdade

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

ESQUINA DA MEMÓRIA

o cheiro do pano dobrado
dentro da lancheira
o cheiro de oiti
entranhado na tarde
o caminho repleto de árvores
o sol boiando na chuva
os motivos que fazem o choro
tornar-se uma gargalhada
o joelho ralado
o espinho da laranjeira
rompendo a paz do final da tarde
romãs sem valor
carambolas como petardos
borboletas chamadas pelos nomes
libélulas cruzando o céu de chapéu
esse barulho ensurdecedor
de uma música pousada
na esquina da memória

REPOUSO

a poesia 

é a zona erógena do caos

poesia é som que surdo inventa

poesia é igual a um passarinho d'água

quem muito se aproxima para ouvir

finda mergulhando no sentir


DESPOJOS

a cama sem pés
suspensa no meio do quarto
o corpo sobre a cama
a vontade suspensa
paredes não aprisionam a vida
todo morto se comporta
e ninguém mais saberá
como se comportam os seus desejos
pertence aos outros
os desejos do morto
faz parte dos seus despojos
diante deles
ninguém se comporta

domingo, 18 de setembro de 2011

TRAGÉDIAS

meus olhos
não criam tragédias
elas estão
ao nosso redor
quando eu era cego
meu tato
só encontrava
o pior

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A RAIVA

a raiva nunca
deixa voltar
a raiva sempre
fica sozinha
a raiva às vezes
nunca acaba sempre

PARA TUDO

tem gente
que quer um pedaço de lua desses
e não tem
tem gente
que vive sempre de dia
mergulhado num suor
que não é seu
tem gente
que madruga sem ter noção do escuro
tem gente
que escreve e pensa estar
usando palavras
tem gente
que enxerga sem usar os olhos
e a paisagem vista
passa a fazer parte do corpo
de quem enxerga
tem gente
que brilha sem cor e as lacunas escusas
não suportam
tem gente
que nem sabe que é gente
e permanece ruminando
a grama que arranca
entre os artelhos

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

FOGO

existem medos
onde não se pode
utilizar os dedos
o calor do desamparo
torna o abraço
um gesto raro
as labaredas da pele
não cruza
o que expele
é sonoro
o silêncio
ao redor do poro

EFEITOS COLATERAIS

são desconhecidos
os efeitos colaterais da poesia
mas existem
são inúmeros
nem dá pra relacioná-los
pra não piorar
melhor não usar

CAIBO

às vezes o espaço oferecido
para ocupação do corpo
não é suficiente
e parte do corpo fica ausente
às vezes o espaço oferecido
excede o permitido
e o corpo fica perdido
a poesia me oferece o espaço
onde o meu corpo cabe exato

ONDE GUARDAR OS SONHOS

bebo da vasilha do caos
o gosto amargo me desperta
vivo de acordo com os meus sonhos
sonho algum dia ter uma cabeça
onde eu possa guardar os sonhos

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

terça-feira, 13 de setembro de 2011

COLAR DE CONTAS

um casal fala de contas
de um colar que não é dela
as contas formam o firmamento
e as asas dele abertas
formam o céu
quando um homem quer ser anjo
a alma se desdobra
até ficar em pé
de onde retirou a alma
guarda a mulher

UMA PRAÇA EM HANNOVER

fui ao extremo
como se alguma praça em hannover
fosse alterar alguma coisa
o ar entre as árvores
todo esse espaço
a dificuldade do idioma
um prato colorido sob os olhos
insuportável
essa pele que se forma
entre as pessoas
uma pele sem poros
o suor que não tem pra onde fugir
borra a paisagem
disfarçado de lágrima

PROVISÃO DO TEMPO

a poesia sempre dá motivos para a chuva
feita de nuvens carregadas de céu
que diante do espelho
não consegue definir a sua cor
porém se empalha
por todos os lados
pulsa como se possuísse órgãos
e algo parecido com sangue lhe aquecesse
o poeta é feito de água
isento de trovões e raios
a palavra é sua temperatura
sempre age contrário
a todas as previsões do tempo

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

COMO SE A VIDA FOSSE QUEBRAR

escolho objetos
como se a vida fosse quebrar
guardo em armários abertos
nos vasos sem fundos
recolho objetos
como se a minha vida
fosse quebrar
guardo em desertos
cobertos de mar

SEMPRE SOZINHO

quem escreve
sempre está sozinho
palavras não são boa companhia
surgem pra quem vive sozinho
o que as palavras formam
não parece com agora
mas com o tempo
mais se parecem com o tempo
quem escreve
nunca está sozinho
quando se afasta das palavras
e se aproxima do que elas significam
a palavra usa o poeta
pra se esconder lá fora

sábado, 10 de setembro de 2011

UM HOMEM DE CORAGEM

quando eu era homem tinha coragem
agora tenho coragem e não sou homem
como se coragem e homem
devessem viver juntos
como se ter coragem fosse coisa de homem
como se o homem só existisse com a coragem
quando eu era coragem não tinha homem
agora tenho homem e não sou mais coragem
resta me travestir de homem
e marcar um encontro com a coragem
não sei se vou ter coragem
não serei se serei homem

DO QUE AINDA NÃO FALEI

não falei da morte
hoje
talvez porque o sol
esteja submerso no quarto
talvez porque meu sonho
esteja gravado no sudário
não falei da morte ainda
hoje
talvez qualquer palavra
desconheça a vida
talvez porque meu sonho
soterre de lágrima o aquário
não falei ainda hoje
morte

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

JAZIGO PERPÉTUO

a poesia é o jazigo perpétuo da agonia
quem tem medo de chorar não cante
quem tem medo de sentir não seja
flores coloridas perfumadas
não interrompem o morto
a cerimônia do adeus é de quem fica
quem tem medo de ter medo
deite-se ao lado do cadáver

EU IA ESCREVER UM POEMA

se não quer começar não comece
pra que dar esperanças a uma página em branco
se a cabeça em branco funciona melhor ocupada
desocupar a cabeça e ocupar a página
pense bem
qual o melhor pra cabeça
deixar que o olho veja o que fez na página
deixar que o papel pense no que guarda a cabeça
se não quer começar não comece
melhor parar por aqui

MALA DE OSSOS

as coisas que não alcançam meus ossos
distribuem distúrbios
avesso ao que posso
mordo as marcas das feridas
até sobrarem sombras
atmosferas de brilho
não desfazem meu drama
dei pouco valor ao que não sei
dei valor a quem não sei
mesmo assim meus ossos
não serão perdoados
viajo e os carrego na caixa do peito

DESESPERO

os degraus do desespero
apesar de irregulares
são fáceis
mais baixos que o chão
parecem buracos
no final são abraços
que sufocam a razão

ANTES DA POESIA

a borra que se forma
entre o silêncio e o agora
entre o poema e a hora
forma palavras
forma demoras

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

RALO

o mar no corredor
encontra no meu olho o ralo
tanto sal confunde minhas lágrimas
tanto mar confunde o meu olhar
esgoto o mar no meu olhar
esgoto minhas lágrimas no esgoto

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

POETA SEM FÔLEGO

o poeta sem fôlego
corre mais que as palavras
depois as socorre
as coloca numa lata
depois as escolhe
como quem mata

terça-feira, 6 de setembro de 2011

ESSA POEIRA NAS COSTAS

o tempo faz essa poeira
em minhas costas
talvez por isso me confundam
com lagartos
a confusão nas minhas costas
carrego esse peso
o tempo faz essa poesia
em minhas costas
talvez por isso me confundam
com o passado
essa palavra minha hóstia
consagrada

A BOMBA

a bomba separou os abraços
como um beijo
tornou estilhaços o azulejo
que formava a tarde
a bomba tornou inútil a primavera
tornou caminhos crateras
tornou pensar algo dormente
transferiu o metal do soldado
para a gente

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

TECIDO VIVO

ter sido vivo
e o meu espanto
em cada canto
em que estive
em pranto
tecido vivo
no meu canto
que estive em pranto
em meu espanto
tecido vivo
com a linha do encanto
amarrado ao canto
do espanto esquecido

FIM

e se eu me acordasse
durante o sonho
e mesmo assim o sonho
continuasse sem mim
e eu continuasse sem o sonho
sem saber o seu fim
e se o sonho me despertasse
para o que continuasse
e se eu adormecesse
enquanto o sonho
se acabasse
talvez eu me tornasse
um sonho
talvez em mim
o sonho se tornasse
e entenderíamos enfim
ser desnecessário
saber o fim do outro
desnecessário saber
que existe um fim

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

AULA DE POESIA

seja comedido
disseram
preste atenção
na conjunção
do verbo com a ideia
cuidado com a plateia
e também com a alcateia
algumas palavras são pontiagudas
outras são de água
o silêncio é um novelo sem trava
respeite os que se envolvem
com essa seara
mostre sua cara e sua casa
completamente diferentes
mostre o que sente
e o que não sente mais recente
mostre a solidão dormente
não mostre nada
ou mostre tudo
no escuro
tudo que aprendeu
enquanto não leu
ou o que esqueceu
ao frequentar a aula

ESPERANDO O GOLPE


eu disse várias vezes
que não viria
mas cheguei
meu pé maior que a boca
agora nada falo
imóvel plantado
parecendo uma árvore
meus gestos vão formando galhos
e o tronco erguido
tornou a cabeça copa
curvo as costas
espero o golpe do machado

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

AUSÊNCIA

sem ti
sinto o chão
da altura do céu

LÁZARO

dores fortes
marcaram o retorno do meu corpo
à atividade
o esquife me deu
a exata noção
do meu tamanho no mundo
e o quanto é ridículo
lutar por oxigênio
descobri que são minhas as pernas
e é meu o lugar
não preciso de ninguém
para me levantar

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

MOVEDIÇA

antes de a poesia chegar
não havia deserto
a sede do sol infinita e sua areia
movediça as palavras
nenhum poeta consegue resgatá-las
por isso recorre às metáforas

MOVENDO PELES

por mais que eu comova a minha pele
nunca enxergarás meus ossos
por mais que eu me perca
nunca serás meu esconderijo
por mais que eu me submeta
aos meus percalços
nunca serás minha salvação
por mais que eu me engane
sem razão
por mais que eu te esgane
não preciso de ti
por mais que eu me esfole
e me pendure em teu varal
nunca serei o silêncio
que atravessa o teu quintal

MINIMALISMO

o poeta minimalista
deseja escrever o poema
usando apenas uma palavra
a idéia não acompanha
o silêncio não ajuda
o poeta minimalista
resolve tornar-se um prolixo
e quer escrever um poema
usando todas as palavras
fica só faltando uma
a idéia não ajuda
o silêncio não acompanha
o poeta descobre que o poeta
é aquele que procura
apenas uma palavra
mas a idéia é absurda
e o silêncio atrapalha

terça-feira, 30 de agosto de 2011

VENTANIAS

a ventania jorra a noite
antes do tempo
os relógios assustados
transformam-se em homens
perdidos no escuro
arrastam pelo calcanhar o futuro
temendo perder este momento

VESTIMENTA

o assoalho do caos me conhece
a minha pele veste os tijolos
meu pelo verte os passos
o resto do meu corpo
é o resto do espaço

PALAVRA NOVA

as palavras não envelhecem
as rugas do silêncio
sabem disso
guarde no seu olho
dessa palavra
a juventude

POEMA DESCABIDO

ninguém me faz falta
morto
descaberei para todos

CABIMENTO

o que me cabe
é o que cabe
na minha cabeça
o amor não cabe
na minha cabeça
o amor não me cabe

CABEÇA

na minha cabeça vazia
só cabe poesia
gostaria de pensar em coisas mais amenas
mas a minha cabeça é pequena

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

RUA VAZIA

a rua vazia cruza a tua vida
sem automóveis e pessoas
árvores secas
nenhuma flor
os cães esqueceram esse caminho
na rua vazia a solidão
mostra os seus dentes
todos eles obturados
quem cuidou desse sorriso
não tinha idéia desse estrago
no meio da tua vida
essa rua vazia
espera os teus passos
não tens como retribuir sorrisos
permaneces sério
calado

DIÁLOGOS

ninguém escuta ninguém
você não escutou isso que eu disse
não tem importância
não vou repetir
o que você entendeu
não faz a menor diferença
não sei se vou escutar
quando você responder

MELHORES FRASCOS

retiro a tampa
minha mão não alcança o fundo
o frasco colado à mesa
assim funciona o poema
uso os olhos a intemperança
mas a mão nunca alcança

BEM PESSOAL

pessoas más
fazem coisas ruins
às pessoas boas
pessoas boas
fazem coisas ruins
às pessoas más
pessoas boas
convivem com pessoas boas
pessoas más
convivem com pessoas más
de vez em quando se misturam
mas quando descobrem
pessoas más
fazem coisas ruins
às pessoas boas
pessoas boas
fazem coisas ruins
às pessoas más

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

OLHO SOBRE TELA

enquanto a lua expira o abismo
oásis subvertem a ordem dos desertos
palavras soterram quem as carregam
o silêncio é o calor do escuro

FRIGORÍFICO

o fato é que não durmo
minha participação nesse sonho é nula
escalo corpos por dentro
engancho palavra na palavra
o cume me conhece
por isso silencia
desfaz a minha pele
enquanto cria

PONTO DE ORIGEM

retorno ao
ponto de origem
disseram
meu ponto de origem
não sei
meu ponto de origem
talvez
me deita curvo
qual uma vírgula
meu ponto de origem
pode ser o final
de alguém
a origem do meu ponto
não sou eu
não me inicio aqui
parto do meio
e o meio nasce
sem ponto de origem
onde inicio
não há ponto
nem sei
se há origem
ponto

COISAS PRA SE FAZER SOZINHO

respirar é sozinho
igual nascer e morrer
respire e com sorte
o coração não te deixará sozinho
quem não tem sorte
já viu
respirar é sozinho
igual a escrever
escreva e com sorte
a palavra não te deixará sozinho
quem não tem sorte
não viu

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

OLHAR DESPETALADO

o olhar despetalado
espalha visões pela paisagem
as pétalas da lembrança
ramificam ao redor da perda
breve é o silêncio equivocado
o barulho da entranha
une a paisagem
lado a lado
e aos poucos vai formando
notícias
não há roteiro
que te encaixe na vida
olhar dependurado
inútil olhar perdido
sem esquiva

DESENCONTROS

as maçanetas interrompem
o silêncio do corredor
falam com as portas
para não serem abertas
vão os passos
os encontros forçados
os abraços necessários
perdidos noutro prédio

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

meu corpo misturado ao sofá
sendo bebido pela tarde
minha cara enorme
meu vômito inóspito
eu teria princípios
se soubesse o que é limite
mediria o sentimento se o encontrasse
não tem nome o que me faz assim
tenho fé em fim

DOSES


não vamos melhorar
nem o mundo
qualquer coisa oferecida
será apenas um paliativo
o segredo é manter-se vivo
até a próxima dose
enquanto o tempo
nos suga por osmose

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A MELHOR PALAVRA

não sei dizer
a melhor palavra
quem souber me diga
e a melhor palavra
que a mim será dita
ainda será pior
que o silêncio que me abriga
dizer a melhor palavra
tarefa que me intriga
encontro sempre a melhor
na minha cabeça
mas não se torna melhor
quando chega à mesa
o desenho não acompanha a idéia
mostrar o desenho
desagrada à platéia
a melhor palavra
não sei dizer
então prefiro escrever

MORRER DE AMOR

só se morre de amor
uma vez
o que acontece depois
não dá pra saber
ninguém nunca voltou
pra dizer

CHÃO DE OUTONO

o chão de outono
é mais intenso
além das folhas
tormentos
desabam despidos
os troncos das árvores
em forma de gritos
não disfarçam
o formato da esquina
por onde dobra o verão
usando corpos
como lastro


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

NOIVAS DE CONCRETO

as noivas de concreto
com seus véus enfeitam
a urbanalidade
futuramente
em seus compartimentos
guardarão a tristeza
e a felicidade
coisas que não se fabricam
com cimento

DEPOIS QUE A FORÇA ACABA

assim eles cortaram as coisas
dessa maneira sem deixar
algum modo de evitar
estávamos dormindo
nossas cabeças degoladas
continuaram sonhando
o coração continuou sentindo
alguns fugiram somente corpo
outros fingiram apenas cabeça
alguns braços fizeram força
eu consegui
escrever esse poema

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

SOBRE A BELEZA INATINGÍVEL

e as papoulas soltas
ofegantes
penduradas nas cores
não dependem
dos nossos humores
sabem o idioma
das abelhas
e o recado deixado
para as borboletas
o céu com inveja
nem se aproxima
e o máximo que
o homem consegue
é uma rima

APRENDENDO A OLHAR

não sei olhar o mundo
como deveria
olho pra baixo
não me vejo
olho para o lado
não me acho
acho que não estou olhando
para onde deveria
olho pra cima
não sou o mundo ainda

SOB A TAMPA

não movo as flores
não respiro
não me mexo
aos poucos me torno
o que pareço
sob a tampa no escuro
decomposto obscuro

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

VÁRIO

quem me procura
encontra outros
quem me esquece
encontra tudo
quem sabe de mim
desconhece
sou aquele que nasce
quando falece
quem me esconde
revela alguém
sou muitos
e ninguém

MELHOR SABER

para melhor saber o céu
as aves não se marcam

para melhor saber o mundo
permaneço mudo

na hora do abismo
melhor se mostram as palavras
durante a queda demonstram
mais poesia que sonho

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

DESTROÇOS

de repente a água que me invade
não me entende
e torna meu corpo parte
da enchente
como se eu fosse um pedaço
como se eu não entendesse de abraço
como se liquefazer as frases
desfizesse os laços
a água que me entendia
quando me invadia
tornava inútil o espaço
tornava azul o plano
onde o tolo enxerga um oceano


SEQUELAS

as seqüelas deixadas pelo ódio
lembram as da morte
a briga não serviu pra nada
a energia roubada
o sangue derramado
as cicatrizes vão ficar
paradas no mesmo lugar
igual ao túmulo que
mesmo esquecido
não evitará a
decomposição do corpo

terça-feira, 16 de agosto de 2011

FRONTEIRAS

pensei ter visto tudo
então veio a cegueira
e me encontrou no escuro
as coisas que me queiram
e os que não me viram por querer
e os que me quiseram sem me ver
terão motivos
pra construir os muros
darei meus passos intrusos
darei meu tato sem furo
iluminarei à minha maneira
até alcançar a fronteira

ANÚNCIO

chega de tolices
tudo não passa
de um jogo de palavras
a poesia é pra quem tem poesia
para quem não tem
a poesia se anuncia
sem palavras

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

NÃO SOU ROMÂNTICO

não sou romântico
por isso esse desmantelo
na pele
esse pelo solto pelo avesso
esse cheiro insosso
na palavra
por isso escrevo flores
nunca colho
não arremedo o que penso
não me aliso
não me perco
não sou romântico
esse beijo que me travo
a boca do ferro no cravo
gravando a marca
no osso
por isso o mundo
pendurado no pescoço

SEM AR

estou sem ar
mas não preciso de ar
para escrever
basta papel e caneta
e todas as outras coisas
que também não necessitam de ar
a poesia respira
sem precisar de oxigênio
utiliza outros elementos
como as palavras
e o silêncio

CONSTRUÇÃO

o tempo quer uma janela
e nos emoldurar nela
nossa cabeça dependurada
com os olhos agarrados à paisagem
a paisagem abraçada ao nosso olhar
e a vida sem sentido
vai construindo paredes
ao redor de tudo isso

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

DISFARCE

quando você partiu
partiu em mil pedaços
começou do meu dedo mindinho
até alcançar os braços
assim meu adeus não tem aceno
tem a intenção no espaço
o que sobrou do corpo
não forma um abraço
o que sobrou nem tem sangue
o que sobrou nem tem carne
o que sobrou nem tem nome
o que em mim sobrou
uso como disfarce

CHÃO OFEGANTE

ao chão ofegante
que me engole
provoco o seu
descanso
traço antes
do meu passo
gestos de barbante
amarro ao meu corpo
outro espaço
deixo alegre o laço
com as cores do chão
quando morto

EXERCÍCIO DA CASCA

derramo da varanda
sentimentos

é mais fácil demonstrar o ódio
em gás neon

escalar paredes
com pés de vento
pode provocar temporais
nos quatro cantos da boca

arroto contato com os outros
sorvendo a superfície do espelho

o azul despido do céu
é o meu alimento

olhos despetalados
enxergam melhores perfumes

à poeira do andaime
farelos de gritos misturados

libélula apagando
o desenho transparente do espaço

quimeras
falácias

cobrir a casca
da idéia
com palavras

AO AR LIVRE

as rosas de fumaça
enfeitam a estrada
eu poderia ir por dentro
prefiro me expor
a poesia que me veste
torna-me mais flor que fumaça
os meus botões estão abertos
o mundo enche a minha camisa

O RELÓGIO DO MORTO

o relógio do morto
não para
continua seu giro monótono
sem tontura aparente
tenta alcançar uma hora
em que o morto
sinta-se presente

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

CERTEZA DO MUNDO

quem tem certeza do mundo
não se perde num poema
incerto mundo me entrega
nesse poema a minha perda
perdido no poema
faço do mundo
a minha perda

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A VIDA SOB A PELE

a vida agulha sob a pele
inocula a morte lenta
mente a morte que não mente
queremos prolongar a dose
até onde a pele não se toque
a morte é a vida quando mente
a morte á a vida sem a gente

REPRESENTAÇÕES

meu rosto representa
exatamente
o que não sou
digo sempre
a segunda coisa
que me vem à mente
a primeira coisa
dispenso pensar
tudo o que eu digo
ainda não é tudo
do que sobra
falta o meu empenho
apenas sopro
a saia do silêncio

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

PROPOSTA

a angústia
não te cabe
ofereço-te
a queda
mais suave
entre nós
o abismo
antes do fim
o abuso
o meu corpo
inconcluso
teu sangue
o intruso
nosso escuro
obtuso

REMEDIADO E SÓ

passarinho pousado no galho
por alguns momentos
suas asas deixam de bater
por alguns momentos
teu coração para de bater
e tu não tens descanso
teu coração sai em busca de socorro
e depois não sabe voltar
teu coração remediado e só
bate sozinho sem caminho

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

BURACO

ficou esse buraco
não sei se me jogo
não sei se tapo
só sei que é fundo
onde me acho
fiquei esse buraco

IDAS

na rodoviária
no aeroporto
no cais
as feridas que se abrem
não fecham mais

EM MOVIMENTO

as pessoas se movimentam
transferem o corpo
para outro momento
meu olho me espia
por onde me foi deixado
meu corpo segue sem mim
movimento estranho
ao meu fim

VEREDA URBANA

os arranhões dos automóveis
na sola das ruas
deixam marcas repetitivas
tudo muito monótono
a chuva
a angústia a morte
eu gostaria muito
de diminuir o volume
mas ainda não me acostumei
com o meu grito

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

VELANDO

para a morte na sala
não há remédio
costura-se uma janela na pálpebra
o xarope da lágrima é a linha
e o escuro se completa ao redor
minando água
nos passos que se encaixam

TERCEIRO EU

meu primeiro eu
nem sabia que era eu
foi ser outro
e se fodeu
desapareceu

meu segundo eu
sabia que era eu
foi ser eu
e se fodeu
aconteceu

GOTAS

ninguém está isento do ódio
nem do amor
as gotas que caem
não são do mesmo tamanho
tiro a camisa
as marcas adivinham
o meu corpo

terça-feira, 2 de agosto de 2011

O AR INTOCADO

o amor queima o ar
cinzas sonham açodadas
suspensas de alguma forma
deforma o ar intocado
pelo amor

VELHA IDEIA

alguém já teve essa idéia
mas vale a pena tentar
nem todo o fruto
nasce de flores mudas
algumas flores explicam
antes de se transmudar
algumas flores denegam
outras nem fluem
algumas sabem
que alguém já teve essa ideia
e permanecem sem brotar
outras não sabem
mas vale a pena tentar

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

SINCERAMENTE

sinceramente não sei onde vou parar com essa minha loucura de achar que sou absolutamente normal e que os outros me enxergam dessa forma sinceramente não sei que momento é esse em que me encontro com as águas e o que elas me deixam entre as espumas escondidas sinceramente não sei o que elas querem o que eles querem os outros quando me enxergam assim
sinceramente
se eu me perder
será por pouco
tempo
é o que procuro
neste momento
e por enquanto

SONHO FALSIFICADO

o sonho está
para a poesia
como o som
está para a música
por isso
a flacidez das palavras
enquanto estamos acordados
e escavamos a lucidez do dia
utilizando sonhos
e falsificamos sonhos
em cada palavra

SEM PALAVRAS

um poema sem palavras
desvaloriza a página
pulveriza a pena
mantém o sistema
um poema sem palavras
é poesia bruta
é mastigar a fruta
sem tocar a casca
quando sem palavras
o poema é escuro
é diamante puro
que se lava

AINDA NÃO É TUDO

nem pense
que isso é tudo
ainda virão
as palavras
o silêncio
talvez até um poema
e quando
tudo isso se for
e dobrar a esquina
e der as costas
e se olhar
diante do espelho
descobrirá então
que ainda
não é tudo

sexta-feira, 29 de julho de 2011

POLÍTICA

se eu disser o contrário
não minta
se eu disser a verdade
não sinta
se eu falar em vermelho
não veja
ao se olhar no espelho
não seja

LOUCURA PARTICULAR

a lâmina no pulso
era uma metáfora
mas a vida não sabia
e se foi antes do sangue
ao lado do corpo
e não adianta querer estancar
o sangue coagulado
mesmo sem cérebro
o coração continua batendo
nem tudo que pulsa está vivo

quinta-feira, 28 de julho de 2011

A POESIA SÓ

alguns poemas são detestáveis
falam de amor e se amparam em palavras
falam de amparo e usam a palavra amor
desamparada e só
assim a poesia se aceita
aceite esse poema
deixe o amor lá fora
e o amparo
a poesia só
sem as palavras

ONDE ESQUECI MINHA RAZÃO

existe um lugar
onde irei chegar
e quando chegar
já me encontrarei por lá
surpreso com a minha chegada
perguntarei a mim
porque só cheguei agora
e responderei que voltei
para o lugar de onde
nunca deveria ter saído
e ao me ver assim confuso
diante de mim mesmo
pensarei em algum poema
e escreverei a esmo
e aos que entenderem
perguntarei onde estão
e para lá encaminharei
minha razão

CHUVA E SOL

a chuva está mais perto
que o sol
assim como a dor
está mais perto que o amor
o sol brilha sem necessidade
o amor também
a chuva irriga os cantos
a dor também

CHUVA SEM VENTO

os arranhões
no vidro da tarde
são verdes
vistos mais de perto
são a chuva

CHUVA COM VENTO

o vento empurra a tarde
contra o tempo
o barulho da chuva
transborda as horas

quarta-feira, 27 de julho de 2011

ODE À ALEGRIA

meu riso é verde
como a pedra

meu lastro é raso
pulso vago

não tem paredes
minha ideia

minha alegria
é vasta

janela

O GRITO DO MORTO

não precisa tocar no morto
pra saber dos seus gritos
sua boca escancarada
cheia de dentes
engole toda a sala
e deixa tudo ausente

terça-feira, 26 de julho de 2011

PRISÃO

entro na minha prisão
levando a chave pendurada no pescoço
por dentro sou moço
vivo da procura
por fora sou um velho cego
tateando a fechadura

POEMA PARA LEMBRAR QUE JÁ SOU GRANDE

meu maior sonho na infância
era ser criança
mas cresci antes do tempo
e alcancei a altura do meu sonho
hoje não brinco mais de sonhar
levo o sonho a sério
e brinco de acordar

segunda-feira, 25 de julho de 2011

MEUS LIMITES

os meus limites são suaves
nem corta tudo
só metade
e o que não corta
permanece aberto
como se soubesse porta

APRENDENDO A MORRER

quem aprendeu a morrer
só faz isso uma vez
eu aprendi a morrer
mas faço isso todo dia
escrever e morrer
são a mesma agonia

VARAL DE PEDRA

o amor não se estende
entre um ponto e outro
o amor não se estende
imóvel
pedra pesada
esperando ser levantada

POÇO RASO

não te dei sorrisos
para que eles voltassem
é raso o poço que se cava
para encontrar poesia
é raso o poço
em que me encontram
mino algo parecido
quando confundes sorrisos com palavras
esse não é o maior problema
maior é cavar
além do permitido

sexta-feira, 22 de julho de 2011

A PELE DOS NUMEROS

nunca deu pra entender
a pele dos números
soma-se o suor
procurando águas
e o sal divide
o possível caminho
nunca entendi para dar
poder aos números
divide-se a água
procurando rumos
e o leito multiplica
o caminhar sozinho

SAUDADE

cabe num copo
não cabe num corpo
nao cabe num vivo
cabe num morto

A POESIA É ASSIM

a poesia é assim
parece que não tem fim
parece que não tem meio
que justifique o fim
a poesia é assim
parece que vem de mim
nem sabe de onde veio
nem sabe de onde vim
a poesia é assim
parece que não parece
parece que não perece
quando começa é o fim

quinta-feira, 21 de julho de 2011

CARTA AOS RUMINANTES

nunca comi capim
acredito que alguém já comeu
por extrema necessidade
ou nenhuma
já bordei estrelas no escuro
já mordi o silêncio
quando fui atacado por ele
nunca vomitei o que sou
porém todo dia
alguém põe o dedo na minha garganta
isso explica as marcas de unhas
nas minhas palavras
embora eu nunca tenha escrito pra ninguém
por certo
o vazio da página se distraiu

FLUÊNCIA

o poeta devaneia
tropeça na gramática e
cai no precipício do fácil
o poeta quer pouco
tudo basta
quer todas as palavras numa caixa
e a impossibilidade de abrí-la
quer na sua palavra
o outro
o poeta não quer
quer a façanha
de aumentar o silêncio
da entranha

quarta-feira, 20 de julho de 2011

TAREFA

a cabeça se foi
mas o sonho permanece
na mesma posição
entre o silêncio e a razão
esculpir paredes
para guardar os sonhos
todos os dias
tarefa do tamanho
da poesia

NOTURNO SEM ÁLCOOL

curva com maré alta
o sol bebe o rio sem álcool
e mesmo assim se embriaga
desaba no final da tarde
arrota a noturna ressaca

ENCAIXE

sem dificuldades me encaixo
no destino como uma luva
estou por fora do destino
na sua curva
evito o contato do destino
com as coisas sujas
não contamino o destino
e a sua sina
não me contamina

terça-feira, 19 de julho de 2011

COLAR

o poeta faz um colar de pérolas
usando bolhas de sabão
recebe em espécie
o que aparece
do outro lado da razão

CÉU PARISIENSE

não vejo o céu de Paris
não vejo o solo
não vejo pessoas
nem fogo
nem luzes
Paris se vestiu de branco
as pessoas aquecidas
sob o frio
são o sangue dessa cidade
sangue que circula
sem coração

segunda-feira, 18 de julho de 2011

TOQUE DO ENLAMEADO

todo mundo quer compromisso
o pó sempre quer um encontro com a água
para se tornar lama
os pés dentro da lama
atingem o nível necessário
a lama abraça a perna deixando marcas
quem não quer ficar marcado pela lama
depois procura a água

TRAVESSEIRO DE SOMBRAS

finjo que estou dormindo
ouço os barulhos da casa
o coração no travesseiro
bombeia idéias de sonhos
onde o meu corpo não cabe
saio pelas ruas
com o mundo por dentro
eu deveria ser pequeno
vou além do meu passo
em qualquer abraço me engasgo
sem saber que é um precipício

quinta-feira, 14 de julho de 2011

MESMO TETO

estamos quase sob o mesmo teto
o que nos une um deserto
e duas sombras
talvez palavras porejadas
de uma testa imaginária
o sonho que ergui tentava alcançar a alma
mas não tive altura para isso
ao rés do chão
enxergo precipícios
em cada poro
em cada vão

OBJETOS PELO CHÃO

esquecem que eu não sinto nada
e espalham sentimentos pela casa
não posso recolher objetos
se não sei onde guardá-los

quarta-feira, 13 de julho de 2011

RASO

nem tudo que me devasta
alcança o meu fundo
nas coisas rasas
enxergo o mundo

IDADE

o olho alcança o que quer ver
a cabeça não acompanha
a cabeça quer outro caminho
reto sem desvios
o olho encaminha o corpo
para o abismo

terça-feira, 12 de julho de 2011

A CULPA DA PALAVRA

agora que estamos a sós
posso dizer a verdade
sabe aquela palavra?
aquela que morreu enforcada?
não era a culpada
nem era culpado o silêncio
sabe onde se esconde a culpa?
depois do silêncio e antes da palavra
no território
onde o barulho do pensamento
começa

NOTURNO

eu não penso
em nada
tudo que quero
é madrugada
sem o escuro
com a minha ausência
clareio os muros
estou entre o futuro
e o fim

segunda-feira, 11 de julho de 2011

INVEJA

o céu deita de bruços
pra te ver no meu sonho

CABIDE

árvore
pendurada no espelho do meu quarto
pendurada na janela do meu sonho
árvore não sei o teu tamanho
sei das tuas raízes
dos teus galhos
com o teu tamanho
sempre me atrapalho
árvore onde perduro
pendurado entre teu queixo
e o mundo

CORAÇÃO TEIMOSO

à minha revelia
o coração continua batendo
bate em retirada
sem deixar rastros
bate na mesma tecla
sem fazer música
bate sem fazer barulho
rebelde coração
bate até sair sangue
do lugar devido
bate sem ouvir meus gritos

quinta-feira, 7 de julho de 2011

CONVERSA ÍNTIMA

a conversa das formigas com os mortos
requer palavras cinzas
as vogais inchadas pelo sono
provocam um constante alvoroço
entre o que restou da alma
e o osso

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A MAIORIA DOS ACORDOS SÃO SOMBRIOS

o mundo não me vicia
em todos os momentos que morri
morri aos poucos
nunca utilizei o meu corpo
para me abster do mundo
as almas porosas
alimentam o mar da angústia
minha alma porosa
troquei pelos motivos
que me fizeram morrer
morri quando me fiz ético
morri quando me fiz cético
morri quando me fiz
cadáver esquecido
e a ausência dos outros
me fez levantar

RACHADURA

a faixa de segurança
rachada
por onde escorre
a minha sombra
murmura o sol
que carrego
na fala

GOTEJANDO SOMBRAS

a chuva se foi
com ela a minha vontade
de escorrer
agora imóvel
gotejo sombras
num lugar qualquer

PARA DIZER NÃO

se for pra dizer não
diga sempre
assim você não corre o risco
de não dizer não
para a pessoa certa
o não cria uma barreira positiva
vista de dentro para fora
e afasta indesejáveis
que se acomodam
diante do sim

NA DÚVIDA MELHOR EXISTIR

a grande dúvida de deus:
onde devo me esconder para existir?
na mente ou no coração do homem?
o homem que pensa, sente deus?
o homem que sente, pensa em deus?
e o homem?
onde deve se esconder pra existir?

terça-feira, 5 de julho de 2011

PERTO DAS FLORES

o objetivo de morrer
não é a fome
outras formas de fugir
produzem vozes
de melhor qualidade
mesmo no deserto
as flores sempre estão perto
a pétala de grão de areia
o perfume da morte
enjaulando teus gestos
parece fugir
o vaso que te carrega
apenas descansa

OUVINDO MÚSICA

ontem surgiu
uma música no meu ouvido
era a música da morte
ela dizia
para onde vais
para onde vais
para onde vais
não precisarás de música
só precisarás da dança

segunda-feira, 4 de julho de 2011

FORA DE HORA

não
você não vai morrer agora
depois desse lá fora
tem outro lá fora
e a vida
que parecia encher tudo por dentro
vai te colocar no centro
do que você pensava ser
vai te matar por dentro
sem você nem perceber

PARADO

meu olho aqui
minha cabeça acolá
minha cabeça não quer pensar o que vê
meu olho não quer pensar
mover a cabeça sem o olho
olhar sem mover a cabeça
mostrar-se mais que a paisagem
ser mais que o pensamento
eu não deveria estar aqui
mas o mundo me move
como a qualquer outro lugar

quinta-feira, 30 de junho de 2011

PRINCÍPIO ATIVO

a luz antes do escuro
o escuro diante da luz
a solidão
é o princípio ativo do fim
a morte nunca
vem acompanhada
solitária pele incompleta
isenta de ossos
e vazios

CURVA DO SOL

o leque das bananeiras
abana a tarde
as cócegas da sombra
no chão
provoca abismos em vão
o sol não mergulha
em qualquer boca
espera a noite
e se curva

quarta-feira, 29 de junho de 2011

ORGASMO DE BARRO

meu orgasmo de barro
não durou um inverno
quem enxerga aço no meu olho
enxerga espelho
enxerga nos próprios gestos
objetos dos seus medos
meu orgasmo de barro
sabia da chuva
sabia dos olhares e dos esgares
manteve os olhos fechados
e o aço enxergado
foi imaginado

terça-feira, 28 de junho de 2011

UM RAMO DIFÍCIL

quando entrei
nesse ramo da poesia
pensei que teria uma vida tranqüila
que eu ficaria sozinho sossegado
mas eu estava enganado
de vez em quando aparece alguém
alguma coisa
e o pior de tudo
surgem as palavras
que me deixam atordoado

MEDIDA CERTA

pouco amor
evapora
amor demais
esborra
na medida certa
é raro o frasco
melhor não senti-lo
desmedido
melhor secá-lo

segunda-feira, 27 de junho de 2011

LINHA DO MAR

a linha do mar
dá ponto sem nó
não se prende à paisagem
derrama-se incontinente
até alcançar a praia

terça-feira, 21 de junho de 2011

NAUFRÁGIOS

a chuva do olho
inundou de inverno
a página do caderno
as pessoas assim como as palavras
navegam num silêncio exasperado
naufragam sem navios
no vazio inesperado

segunda-feira, 20 de junho de 2011

OLHO SECO

o olho seco
diante do mar
o azul
secando o olhar
a paisagem
além do pensar
alguém
se havia
cobriu de outra cor
esse dia
amarelou o azul
com agonia

AVISO

eu avisei que o amor
iria encher tudo
depois que enchesse tudo
iria entupir tudo
eu avisei
que depois que o amor chegasse
você tentaria respirar
e não conseguiria
o coração tentaria bater
mas não conseguiria
eu avisei que
depois que o amor chegasse
você não teria mais vida
e nem se você quisesse
conseguiria morrer
eu avisei que o amor
tomaria conta de tudo
não restariam pessoas
nem as coisas saberiam
o que fazer com todo esse amor
acumulado sobre elas
eu avisei

PASSADO

nem agora nem amanhã
restou incólume o passado
rio que corre num leito errado
e os peixes o sobrevoam
à espera do mergulho impossível

sexta-feira, 17 de junho de 2011

MARULHO

o movimento do barco 
tornou obtuso o abismo de água
o barco navegando no meu olho
sem passageiros
mostra o quanto é impossível essa paisagem

ver nem sempre é o melhor tesouro
ser visto embriaga o pensamento do outro
entre a quilha e o fim da água
exponho o meu tesouro

DE CORPO PRESENTE

a mosca desenha um labirinto de ausências
encontra o meu corpo
faço tudo para não assustá-la
minha morte mostrará o segredo do caminho
silêncios erguem as paredes do labirinto
para onde vou não preciso de asas
o escuro do caminho é a minha casa

quinta-feira, 16 de junho de 2011

FLORES

as flores constroem olhares ao seu redor
não sabem morar
movem a solidão para o alto
mancham de cor a paisagem

REVOADA DE AUSÊNCIAS

o pássaro que era meu
me pensou o ar
voou para dentro
de outro lugar
cantou minha presença
ninguém ouviu
bateu as asas da ausência
e partiu

FALSO NINHO

o desenho formado na pedra
pelo cocô do passarinho
lembra um ninho
as sombras do passarinho
mergulham no desenho
em busca de carinho
mergulham sem medo
nesse falso aconchego

quarta-feira, 15 de junho de 2011

QUASE UM RIO

é seco o leito em que me deito
pedregulhos arranham meu peito
peixes me atravessam
não correm sal nem açúcar
nos meus veios
o meu meio transparente
transborda cores reticentes
não tenho margem para ser um rio
com nada me pareço
desemboco num mar que desconheço

terça-feira, 14 de junho de 2011

SONO PROFUNDO

tão profundo
é o sono dos mortos
que as carnes fogem
para os sonhos

DE CORPO AUSENTE

sem pelo
o corpo despede apelos
sem pele
o corpo despe-se do pelo
sem osso
o corpo cobra alvoroços
sem aço
o corpo evapora abraços

o que ultrapassa a nuvem
não é de chuva
nem de pássaro
embora de aço
o que acumula o espaço
não precisa de um corpo

segunda-feira, 13 de junho de 2011

CORRENDO COM A CHUVA

a chuva veio ao meu encontro
deparou-se com um homem inacabado
a chuva completou-me com seus escombros
refeito em águas corro ao seu lado

ALGESIA

não vou mentir
a dor não vai passar
quando o poema acabar
ela vai persistir
mesmo depois
que você deixar de existir
a dor vai passar
de você pra outro lugar
e nesse lugar vai doer
mesmo sem ser você
quando o poema acabar
parecerá que a dor passou
e ao se mover vai perceber
que o poema faz parte da dor

IMAGINAÇÃO

para imaginar a imaginação
utilizo as mãos
ergo com os gestos
pedras no ar
alicerce
da minha queda
na realidade

sexta-feira, 10 de junho de 2011

OLHAR

olho
para onde cabe
o meu olho
e o que olho
não me cabe
sou por exemplo
para a paisagem
parte de um olhar
que não cabe
no seu olho

MAIS UM MADRIGAL

nas costas da tarde
as flores se abrem
como feridas
do hálito do seu grito
exala o perfume
dos dissabores
cores doloridas
e as borboletas
nas suas quedas
tatuam espasmos
como primaveras

REMENDOS

costuro o tempo
ele se guarda
por dentro
de mim
demonstra
meus remendos

terça-feira, 7 de junho de 2011

CUSTÓDIA

ando sem esperança
ontem ela enviou uma carta
meu endereço estava errado
não tem portas a solidão
fabrico maçanetas em vão

segunda-feira, 6 de junho de 2011

ATO SOLITÁRIO

papai fode mamãe no quarto ao lado
na sala meus irmãos
brigam pelo último pedaço de pão
eu brigo com as palavras
procuro tornar um poema
parecido com as estrelas
mas a vida insiste em escondê-las
sob a pele dos meus pais
sob a fome dos meus irmãos
sob esta página
que insiste em me dizer não

BANDEIRA

tentei várias vezes
e o poema não moveu as folhas
o vento conseguiu mais fácil
o vento tem mais poder que o poema
mas quando não escrevo não consigo respirar
e mesmo quando o vento para
o poema continua me tremulando na tarde

TORNIQUETE

o amor rasgou a tarde
pelo lado errado
o sangue não saiu
pelo lugar devido
e o que se esperava da dor
tornou o pulso inevitável
caminho de volta

AUTOMÓVEIS

automóveis coloridos
deixam o solo dolorido
automóveis em preto e branco
deixam o céu mais branco
coloridos ou pretos e brancos
quem os colocou neste canto
automóveis e seus motores
quem desligou seus amores

sexta-feira, 3 de junho de 2011

DOIS LAGOS

estou entre
o homem que mata
e o homem que morre
entre o ódio e o medo
entre o sangue e a escuridão
entre a alegria e a solidão
o homem que morre deitado
forma um lago
o homem que mata
bebe desse lago
além do que pede a sua sede

quinta-feira, 2 de junho de 2011

ANTES DO OUTONO

as folhas caíram antes do outono
com o peso das minhas palavras
estavam todas ali
poderiam ser poemas
as idéias as imagens as possibilidades
todas reunidas
num conjunto
pareciam caixas desguarnecidas
plantas cobertas de pele
movimentadas por uma respiração interna
algo parecido com vida
alimentos tragados
pela boca do vento

quarta-feira, 1 de junho de 2011

ARTERIAL

os galhos sem a árvore
minhas artérias fora do mundo
um sangue impreciso
exala um cheiro
parecido comigo
não preciso ser um corpo
para ser morto
não preciso ser um morto
para ser aborto
caminhos e esperas
pendurados na janela
pessoas guardadas nas casas
sentimentos adormecidos
nas malas esquecidas

terça-feira, 31 de maio de 2011

ASAS INTERNAS

não sinto motivos para levantar
muito menos para permanecer deitado
minhas asas são internas
vôo sem precisar do corpo
minhas quedas são constantes
sou alvejado pelos meus sonhos
as palavras são minhas penas

segunda-feira, 30 de maio de 2011

NOSSA CASA

pensar na nossa casa
como um mar
que fosse solto
e o eterno andar
das suas pernas
fosse o fim
antes do porto

SUPÉRFLUAS

as luzes supérfluas
escorrem pelo corpo
acumulam aos pés a sombra
as luzes precisas não escorrem
encontram no corpo
o motivo da fala

QUERER

as pessoas querem as outras
como se quisessem júpiter ou saturno
querem coisas distantes e desconhecidas
se pudéssemos conhecer o outro de verdade
não quereríamos ninguém
seria mais fácil
se nos conhecêssemos por dentro
e quiséssemos apenas a nós mesmos
não quero você agora
nem amanhã
talvez nem queira
a mim mesmo
tudo o que quero
é ontem
quando o que eu queria
não posso mais ter

quinta-feira, 26 de maio de 2011

quarta-feira, 25 de maio de 2011

ASSEPSIA

limpar o sangue
antes que ele fuja
e leve
mais leve que o corpo
a cor da intempérie
o peso da espécie
que se muda
fale o que parece
ser que não exige
não se entregue
limpar o cético
padecer do encontro

PEQUENAS COISAS DO INVERNO

o frio do abraço pesando nas costas
o mundo entre todas as outras coisas guardadas
a forma como o passo se situa quando parado
formas o vento entende algo que supere
demais acordes noutras músicas
água tem sentido quando falada
pequenas coisas do inverno
que a chuva esclarece

INTERRUPTORES

a lâmpada solitária no escuro
assim a poesia
no escuro da página
parece branca a espera da luz
parece claro no outro
a luz que não vem
nem toda energia
se parece com o dia
claridade se empalha também

segunda-feira, 23 de maio de 2011

FALESIANA

afogado nas costas que o mar perdeu
mãos erguidas em falésias
acenando para o mundo raivoso
meu corpo preenche as palavras
por mais que eu me movimente
não consigo o entendimento

AVIÃO

o avião tira o silêncio do lugar
corta o céu sem deixar cicatrizes
quase enforcado sem teto
asas paraliticas
procura um ninho
encontra esse poema no caminho
pousa na palavra
desova pessoas desamparadas

sexta-feira, 20 de maio de 2011

MOTO DA IMOBILIDADE

era pra sentir
agora não se atreva
caminhe ileso
carregando o possível
circunde o que deseja
faça-se um objeto
repouse incólume
não se permita
engula os sentidos
não seja

CERTA LÍNGUA

a língua certa no lugar certo
a falta que faz
em são Petersburgo por exemplo
diante de Irina
fiquei sem fala
meu russo era fraco
não levantava dez quilos
lembrei dessa frase
a língua certa no lugar certo
se bem que poderia
também ser usada
com a falta que
a língua de Irina
faz no meu períneo
e mesmo que outra língua fosse
usada no lugar certo
seria certa qualquer língua

CAMISA DESBOTADA

a camisa desbota com o tempo
o tempo se desveste
desbotando os nossos olhos
impedindo que vejamos
seu desbotamento

quarta-feira, 18 de maio de 2011

MERECIMENTO

a chuva não merece
meu corpo sob ela
espremo o sol
sobre a nuvem
guardo o bagaço
para fabricar estrelas
a noite não merece
meu corpo sob ela
desenrolo o dia
sobre o escuro
guardo as estrelas
no poema

EU ME PUNO

pela pele que curti
pelo foco que causei
pelo poro que senti
pelos mares que ousei
eu me puno
ao me tornar imune
ao me explodir em lumes
ao me fechar em gumes
ao mergulhar perfumes
eu me puno
por tudo que não causei

terça-feira, 17 de maio de 2011

FOI DESSA MANEIRA

nunca imaginei que fosse assim
as coisas nunca são como imaginamos
um botão não diz como será a rosa
uma nascente não diz como será o rio
um ovo não diz como será a ave
um corte não diz como será o sangue
um poema não diz como será
o poeta
imagina exatamente como as coisas são
e escreve o contrário

segunda-feira, 16 de maio de 2011

PARECE LIMITADO

parece que não cabe nada
dentro de uma pessoa
limitada pela altura
pelo peso
pelo gesto que a comporta no espaço
independente disso
os poros liberam suor
os olhos liberam lágrimas
e por mais que ela se olhe por dentro
não alcança o fim de tudo que está sentindo

sexta-feira, 13 de maio de 2011

HOMEM AO REDOR DO MURO

o homem ao redor do muro
misturado aos arbustos
sua sombra liga o sol ao mundo
queria ter a melhor palavra
secreta silêncios em gotas
sua melhor atmosfera
perder o que lhe acolhe
o muro que rodeia não precisa
do alicerce fácil
rompe o espaço para os lados
como se respirasse
o homem misturado aos arbustos

quinta-feira, 12 de maio de 2011

A MANEIRA MAIS LENTA

dedicado aos leitores equivocados

confundem o que escrevo
com o que sinto
confundem o que sinto
com o que escrevo
confundem o que eu sinto
confundem o que eu escrevo
talvez não saibam que escrever
é a maneira mais lenta de morrer

A FLOR SOB O VESTIDO

esse sorriso clandestino
girinos roçando a lagoa do meu olho
o atalho recortado que colei no caminho
a lágrima apagou
perdido
tal qual uma flor
nascida num umbigo
que murcha asfixiada
sob o vestido

quarta-feira, 11 de maio de 2011

FERNANDO ASSIS PACHECO

A namoradinha de organdi


Como na dança ritual dos patos colhereiros se te amei
foi a cem por cento da minha capacidade metafórica
mas copiado de livros onde o herói sempre enviuvava
cruzei imensas vezes sob a tua varanda com glicínias
pensando numa cena infeliz à moda do Harold
eu sonhava contigo?
eu assoava-me ao pijama!

DAN PAGIS

Escrito a lápis em um vagão de trem lacrado

Aqui neste vagão
eu Eva
com meu filho Abel
se virem meu primogênito
Caim filho de Adão
digam-lhe que eu

("tradução" perpetrada por Ricardo Domeneck
a partir das versões inglesa, espanhola e alemã.)

ROSMARIE WALDROP

Entre


Eu não me sinto muito em casa
em qualquer lado do Atlântico
Eu não estou irritada os peixes
guardaram-me
um lar faz você esquecer
insciente
onde você está
a não ser que pense que gostaria de
estar nalgum lugar
Eu não penso que eu gostaria de estar
nalgum outro lugar
lugares são muito iguais
ciente
Eu estou nenhures
Eu estou de pé firme numa folha líquida
tocada de todos os lados
trocar seu país
não faz você
crescer (uma boneca alemã
como uma imagem da América?)
não faz você mudar tanto
que não se lembre
Eu me lembro
coisas são muito iguais
tão iguais
diferenças são farpadas
Eu experimento viver à distância
assistindo duma janela
imóvel
nem totalmente aqui
nem ali
uma criatura com pulmões e guelras
Eu vivo em água rasa
mas
quando chove
Eu herdo a terra

(Tradução de Ricardo Domeneck)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

ENQUANTO POSSO

como sal
enquanto posso
como açúcar
enquanto posso
como rola como buceta
enquanto posso
enquanto posso
como a vida
que não me é oferecida
enquanto posso
sonho o impossível
enquanto posso
como fezes como o fácil
como o difícil
enquanto posso
como o que escrevo
enquanto posso
permito que me comam
enquanto escrevo
enquanto posso

MELANCOLIA

tristeza sonora
toca essa melancolia
parece um choro
é só uma melodia
escuta com a lágrima
escura escondida
escusa empatia
com a vida

sexta-feira, 6 de maio de 2011

MANCHA NA PELE

a mancha na pele da poesia
torna o dia sem pele
e o dia sem pele anoitece
enquanto o nervo adormece
a mancha na pele da poesia
fatia roupas quase leves
e as roupas quase leves
não se aquecem nos corpos
que amanhecem

quinta-feira, 5 de maio de 2011

LUNAR

tem gente que nunca viu o mar
eu vejo todo dia
eu nunca vi neve
tem gente que vê todo dia
tem gente que já viu a lua
e pensa conhecer o mundo todo
tem gente que nunca leu um poema
e consegue sobreviver sem isso
tem poeta que nunca viu a lua
e escreve como se a conhecesse

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A BOCA

parecia dente
o que mordia
parecia cor
o que sorria
era emborcado
o pensamento intenso
era de vento
a palavra
parecia boca
quando falava
mas era o tempo
que ardia

terça-feira, 26 de abril de 2011

BURACO NO MEIO

minha sombra
com um buraco no meio
o espaço da alma que não veio
a alma se foi enquanto eu dormia
a sombra sem alma durante o dia
por isso esse buraco no meio da sombra
não me assombra
esse buraco no meio
não disse a que veio
se era da alma por que tão feio
por que não de lado e não no meio
minha sombra
com um buraco no meio
o nada que jorra forma um veio
quem pensa ser água agarre esse seio

FOLHA SOLTA

soltei a folha
ela não caiu no chão
as palavras a deixaram no ar
a poesia faz o chão
noutro lugar

segunda-feira, 25 de abril de 2011

LAUTRÉAMONT

A verdade trivial tem mais genialidade que
as obras de Dickens, Gustave Aymard, Victor
Hugo, Landelle.
Com estas, uma criança
sobreviverá ao universo mas dificilmente reconstruirá a
alma humana. Com aquela poderia fazê-lo facilmente.
Concluo isso a partir da descoberta da definição de sofisma.
As palavras são expressas na tentativa de adquirir um efeito significativo.
Um idéia pode melhorar, apenas se mudarmos o sentido de algumas palavras.
O plágio é necessário. O progresso implica nisso.
podemos melhorar as palavras de outro escritor, usando algumas de suas expressões,
apagando uma idéia falsa e substituindo por uma idéia
mais justa.


PLAGIADO DO ORIGINAL FRANCÊS

terça-feira, 19 de abril de 2011

BENJAMIM PÉRET

A doença imaginária



Eu sou o cabelo de chumbo

que viaja de astro em astro

que se tornará em cometa

e num ano e num dia te destruirá.



Mas por enquanto não há dias nem anos

existe apenas uma planta viçosa

de que desejas ser semelhante



Para ser irmão das plantas

é preciso crescer na vida

ser sólido quando na morte

Ora eu sou somente imóvel

e mudo como um planeta

Vou banhando os pés nas nuvens

que como bocas em volta

me condenam a ficar

entre os que parados estão

e que as plantas desesperam



No entanto um dia

os líquidos revoltados

lançarão para as nuvens

armas assassinas

manejadas pelas mulheres azuis

como os olhos das filhas do norte



E esse dia será dentro de um ano e um dia

FRANCIS PICABIA

segunda-feira, 18 de abril de 2011

GIACOMO LEOPARDI

CANTO XXVIII - A SI MESMO



Repousa para sempre,

Meu coração cansado. O engano extremo

Que acreditei eterno – é morto. Sinto

Em nós de enganos puros,

Não que a esperança: o desejo já extinto.

Dorme até nunca – e o muito

Que pulsaste. Não vale coisa alguma

O impulso teu, nem de um suspiro é digna

A terra: amarga e balda

É a vida, mais que tudo – e lama o mundo.

Aquieta-te, não creias

Numa outra vez. Ao querer nosso o fado

Paga em morte: despreza-te, por fim,

E à natureza, e ao mudo

Poder que – ingente – à comum perda leva,

E à infinita vaidade de tudo.


(Tradução de Renato Suttana)

HILDA HILST

É crua a vida. Alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

No estreito-pouco

Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

(Alcoólicas - I)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

GLAUCO MATTOSO

#4 MANIFESTO COPROFÁGICO [1977]

"Mierda que te quiero mierda" (García LOCA)

a merda na latrina
daquele bar da esquina
tem cheiro de batina
de botina
de rotina
de oficina gasolina sabatina
e serpentina

bosta com vitamina
cocô com cocaína
merda de mordomia de propina
de hemorróida e purpurina

merda de gente fina
da rua francisca miquelina
da vila leopoldina
de teresina de santa catarina
e da argentina

merda comunitária cosmopolita e clandestina
merda métrica palindrômica alexandrina

ó merda com teu mar de urina
com teu céu de fedentina
tu és meu continente terra fecunda onde germina
minha independência minha indisciplina

és avessa foste cagada da vagina
da américa latina

http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/quem.htm

AUGUSTO DOS ANJOS

ESSE BLOGUEIRO VAI DAR UM TEMPO - POR MOTIVOS TÉCNICOS MAS ENQUANTO ISSO VOU PUBLICAR ALGUNS POEMAS QUE EU GOSTO, HOJE VAI ESSE DE AUGUSTO DOS ANJOS, QUE NÃO MORREU DE TUBERCULOSE MORREU DE PNEUMONIA, QUE NÃO ERA TRISTE ERA ALEGRE, QUE GOSTAVA DE BRINCAR COM AS PALAVRINHAS COMO EU TAMBÉM GOSTO.

ILUSÃO



Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!

Assim, em Tebas -- a tumbal cidade,
A múmia de um herói do tempo de Ísis,
Ostenta ainda as mesmas cicatrizes
Que eternizaram sua heroicidade!

Quem vê o herói, inda com o braço altivo,
Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo,
E, persuadido fica do que diz...

Bem como tu, que nessa crença infinda
Feliz me viste no Passado, e a inda
Te persuades de que sou feliz!

quinta-feira, 14 de abril de 2011

SOTERRADO

invento namoradas
e elas
como se beijassem
ao mesmo tempo em que
a terra me cobre com esse
outro beijo
que me apaga
e me conduz ao silêncio
que nunca acaba

MAR SEM CAMINHO

aproveito o dia vago
divago
devagar entre as vagas
que me invadem
eu era o mar
antes de ser
tudo isso
era o meu cais
onde atraco
os meus ais
eu era porto
antes de ser
quase morto
fui o caminho
onde pensas
que vais

terça-feira, 12 de abril de 2011

ESCUDOS

quem não tem delírio
usa o ódio como escudo
e nós que bebemos o dia
como quem bebe uma hemácia
e nos embriagamos com o tédio alheio
e nos mostramos felizes embora mortos
e nos deixamos levar por certas palavras
e nos enforcamos nos galhos ocultos da força
precisamos do ódio pra evitar o silêncio
e gritar aquelas palavras que não nos leva
e vestir a limalha que nos reserva
quem não tem delírio
não tem fama
nem fome
nem a poesia como escudo

DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...