terça-feira, 31 de maio de 2011

ASAS INTERNAS

não sinto motivos para levantar
muito menos para permanecer deitado
minhas asas são internas
vôo sem precisar do corpo
minhas quedas são constantes
sou alvejado pelos meus sonhos
as palavras são minhas penas

segunda-feira, 30 de maio de 2011

NOSSA CASA

pensar na nossa casa
como um mar
que fosse solto
e o eterno andar
das suas pernas
fosse o fim
antes do porto

SUPÉRFLUAS

as luzes supérfluas
escorrem pelo corpo
acumulam aos pés a sombra
as luzes precisas não escorrem
encontram no corpo
o motivo da fala

QUERER

as pessoas querem as outras
como se quisessem júpiter ou saturno
querem coisas distantes e desconhecidas
se pudéssemos conhecer o outro de verdade
não quereríamos ninguém
seria mais fácil
se nos conhecêssemos por dentro
e quiséssemos apenas a nós mesmos
não quero você agora
nem amanhã
talvez nem queira
a mim mesmo
tudo o que quero
é ontem
quando o que eu queria
não posso mais ter

quinta-feira, 26 de maio de 2011

quarta-feira, 25 de maio de 2011

ASSEPSIA

limpar o sangue
antes que ele fuja
e leve
mais leve que o corpo
a cor da intempérie
o peso da espécie
que se muda
fale o que parece
ser que não exige
não se entregue
limpar o cético
padecer do encontro

PEQUENAS COISAS DO INVERNO

o frio do abraço pesando nas costas
o mundo entre todas as outras coisas guardadas
a forma como o passo se situa quando parado
formas o vento entende algo que supere
demais acordes noutras músicas
água tem sentido quando falada
pequenas coisas do inverno
que a chuva esclarece

INTERRUPTORES

a lâmpada solitária no escuro
assim a poesia
no escuro da página
parece branca a espera da luz
parece claro no outro
a luz que não vem
nem toda energia
se parece com o dia
claridade se empalha também

segunda-feira, 23 de maio de 2011

FALESIANA

afogado nas costas que o mar perdeu
mãos erguidas em falésias
acenando para o mundo raivoso
meu corpo preenche as palavras
por mais que eu me movimente
não consigo o entendimento

AVIÃO

o avião tira o silêncio do lugar
corta o céu sem deixar cicatrizes
quase enforcado sem teto
asas paraliticas
procura um ninho
encontra esse poema no caminho
pousa na palavra
desova pessoas desamparadas

sexta-feira, 20 de maio de 2011

MOTO DA IMOBILIDADE

era pra sentir
agora não se atreva
caminhe ileso
carregando o possível
circunde o que deseja
faça-se um objeto
repouse incólume
não se permita
engula os sentidos
não seja

CERTA LÍNGUA

a língua certa no lugar certo
a falta que faz
em são Petersburgo por exemplo
diante de Irina
fiquei sem fala
meu russo era fraco
não levantava dez quilos
lembrei dessa frase
a língua certa no lugar certo
se bem que poderia
também ser usada
com a falta que
a língua de Irina
faz no meu períneo
e mesmo que outra língua fosse
usada no lugar certo
seria certa qualquer língua

CAMISA DESBOTADA

a camisa desbota com o tempo
o tempo se desveste
desbotando os nossos olhos
impedindo que vejamos
seu desbotamento

quarta-feira, 18 de maio de 2011

MERECIMENTO

a chuva não merece
meu corpo sob ela
espremo o sol
sobre a nuvem
guardo o bagaço
para fabricar estrelas
a noite não merece
meu corpo sob ela
desenrolo o dia
sobre o escuro
guardo as estrelas
no poema

EU ME PUNO

pela pele que curti
pelo foco que causei
pelo poro que senti
pelos mares que ousei
eu me puno
ao me tornar imune
ao me explodir em lumes
ao me fechar em gumes
ao mergulhar perfumes
eu me puno
por tudo que não causei

terça-feira, 17 de maio de 2011

FOI DESSA MANEIRA

nunca imaginei que fosse assim
as coisas nunca são como imaginamos
um botão não diz como será a rosa
uma nascente não diz como será o rio
um ovo não diz como será a ave
um corte não diz como será o sangue
um poema não diz como será
o poeta
imagina exatamente como as coisas são
e escreve o contrário

segunda-feira, 16 de maio de 2011

PARECE LIMITADO

parece que não cabe nada
dentro de uma pessoa
limitada pela altura
pelo peso
pelo gesto que a comporta no espaço
independente disso
os poros liberam suor
os olhos liberam lágrimas
e por mais que ela se olhe por dentro
não alcança o fim de tudo que está sentindo

sexta-feira, 13 de maio de 2011

HOMEM AO REDOR DO MURO

o homem ao redor do muro
misturado aos arbustos
sua sombra liga o sol ao mundo
queria ter a melhor palavra
secreta silêncios em gotas
sua melhor atmosfera
perder o que lhe acolhe
o muro que rodeia não precisa
do alicerce fácil
rompe o espaço para os lados
como se respirasse
o homem misturado aos arbustos

quinta-feira, 12 de maio de 2011

A MANEIRA MAIS LENTA

dedicado aos leitores equivocados

confundem o que escrevo
com o que sinto
confundem o que sinto
com o que escrevo
confundem o que eu sinto
confundem o que eu escrevo
talvez não saibam que escrever
é a maneira mais lenta de morrer

A FLOR SOB O VESTIDO

esse sorriso clandestino
girinos roçando a lagoa do meu olho
o atalho recortado que colei no caminho
a lágrima apagou
perdido
tal qual uma flor
nascida num umbigo
que murcha asfixiada
sob o vestido

quarta-feira, 11 de maio de 2011

FERNANDO ASSIS PACHECO

A namoradinha de organdi


Como na dança ritual dos patos colhereiros se te amei
foi a cem por cento da minha capacidade metafórica
mas copiado de livros onde o herói sempre enviuvava
cruzei imensas vezes sob a tua varanda com glicínias
pensando numa cena infeliz à moda do Harold
eu sonhava contigo?
eu assoava-me ao pijama!

DAN PAGIS

Escrito a lápis em um vagão de trem lacrado

Aqui neste vagão
eu Eva
com meu filho Abel
se virem meu primogênito
Caim filho de Adão
digam-lhe que eu

("tradução" perpetrada por Ricardo Domeneck
a partir das versões inglesa, espanhola e alemã.)

ROSMARIE WALDROP

Entre


Eu não me sinto muito em casa
em qualquer lado do Atlântico
Eu não estou irritada os peixes
guardaram-me
um lar faz você esquecer
insciente
onde você está
a não ser que pense que gostaria de
estar nalgum lugar
Eu não penso que eu gostaria de estar
nalgum outro lugar
lugares são muito iguais
ciente
Eu estou nenhures
Eu estou de pé firme numa folha líquida
tocada de todos os lados
trocar seu país
não faz você
crescer (uma boneca alemã
como uma imagem da América?)
não faz você mudar tanto
que não se lembre
Eu me lembro
coisas são muito iguais
tão iguais
diferenças são farpadas
Eu experimento viver à distância
assistindo duma janela
imóvel
nem totalmente aqui
nem ali
uma criatura com pulmões e guelras
Eu vivo em água rasa
mas
quando chove
Eu herdo a terra

(Tradução de Ricardo Domeneck)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

ENQUANTO POSSO

como sal
enquanto posso
como açúcar
enquanto posso
como rola como buceta
enquanto posso
enquanto posso
como a vida
que não me é oferecida
enquanto posso
sonho o impossível
enquanto posso
como fezes como o fácil
como o difícil
enquanto posso
como o que escrevo
enquanto posso
permito que me comam
enquanto escrevo
enquanto posso

MELANCOLIA

tristeza sonora
toca essa melancolia
parece um choro
é só uma melodia
escuta com a lágrima
escura escondida
escusa empatia
com a vida

sexta-feira, 6 de maio de 2011

MANCHA NA PELE

a mancha na pele da poesia
torna o dia sem pele
e o dia sem pele anoitece
enquanto o nervo adormece
a mancha na pele da poesia
fatia roupas quase leves
e as roupas quase leves
não se aquecem nos corpos
que amanhecem

quinta-feira, 5 de maio de 2011

LUNAR

tem gente que nunca viu o mar
eu vejo todo dia
eu nunca vi neve
tem gente que vê todo dia
tem gente que já viu a lua
e pensa conhecer o mundo todo
tem gente que nunca leu um poema
e consegue sobreviver sem isso
tem poeta que nunca viu a lua
e escreve como se a conhecesse

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A BOCA

parecia dente
o que mordia
parecia cor
o que sorria
era emborcado
o pensamento intenso
era de vento
a palavra
parecia boca
quando falava
mas era o tempo
que ardia

DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...