segunda-feira, 31 de outubro de 2011

MANEIRA DE ENXERGAR O MUNDO

minha maneira de enxergar o mundo
não uso os olhos
tenho pouco tato
pareço um morto estupefato
respiro desatento
o que sinto é puro
vento
desmanchando os cabelos
do intestino
grosso modo de enxergar o mundo
não uso os outros
tenho poucos traços
pareço um cadáver absorto
inspiro lento
o que vejo é um furo
desalento
desmanchando os pelos
do intestino
delgado

FOSSE

se eu fosse o mar
seria só espuma
se eu fosse o ar
seria pó
se eu fosse amar
seria só

DIZER

estou esquecendo palavras
às vezes tenho algo a dizer
mas esqueço as palavras
às vezes tenho as palavras
mas não tenho o que dizer
às vezes tenho palavras mas não tenho poemas
às vezes tenho poemas mas não tenho palavras

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

ABISMOS

abismo com dobras
uma escada

abismo sem certezas
um fosso

abismo sem paredes
um alvoroço

MAR NO COPO

colado à parede
sob percevejos
a foto do mar
dentro do copo
bebo o mar
quando quero ter certeza
sinto o mar
quando me solto

PICOTES

em tempo
não necessito de assombros
portanto nada de negar meu espanto
por enquanto rasgo o meu silêncio
e os picotes se acomodam
em compêndios

RELÓGIO

não se preocupe
mesmo sem certeza
vai ser assim
não pense que pensar vai mudar alguma coisa
não pense
não se iluda com a curva do relógio
o tempo tem um ponto
bem no meio

SUSPENSÃO CORPORAL

os ganchos que sustentam o meu corpo
são feitos de sombra
iguais a esses ganchos
que sustentam essas palavras
sob nós um estranho sangue se mistura
às nossas secreções
algo parecido com nossas emoções
sendo mais fáceis

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

ENCAIXOTADOS

o tempo nos jogou
nessa caixa sem fundo
a felicidade não dá tempo
o fundo da caixa é o mundo

TERMINAL

a poesia é a
representação gráfica
do câncer
alguns têm cura
quando descobertos no início
é impossível descobrir
a poesia no início
a poesia não tem cura
é inoperável
quem descobre a poesia
descobre o fim

terça-feira, 25 de outubro de 2011

POEMA PARECIDO COM ALGUÉM

alguns poemas lembram pessoas
não deveriam
poemas devem lembrar palavras
imagens
silêncios
espero que não se lembrem de mim
ao ler este poema
lembrem das palavras
das imagens
dos silêncios

MAIS UM ANIVERSÁRIO

todo mundo fica um pouco otário
quando faz aniversário
a festa finge que disfarça uma morte iminente
a luz que traduz os dentes
quase se apaga
acende um lírio no ilusório
e
mesmo sorrindo
não dá pra lacrar o buraco
por onde o tempo vai se extinguindo

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

PLANTA

rego a planta dos pés
pisando o mundo
é de água onde passo
é de sede o meu passo
a raiz dos meus pés
não tem fundo

TÉDIO

não acontece absolutamente nada
o tédio cria músculos na insônia
o sol arrasta a noite pelos cabelos
alguns fios escapam e cobrem o meu rosto
meu corpo não se aprofunda
quer ter passos onde não há piso
meus sonhos são dos outros
e nem preciso
cabeças alheias ocupam meu pescoço
minha pele se sustenta sem ossos
arroto o gosto do mundo
e não me dou por satisfeito
quando tenho janelas
não tenho olhos
quando tenho olhos
não tenho paisagens
são miragens 
a minha imagem
e semelhança

LIMPO

a pessoa mais limpa do mundo
sou eu dentro do espelho
fora dele
bóio entre os detritos
mergulho nessa superfície
pensando ser outra pessoa
dentro do espelho
ou fora dele
repito os mesmos gestos
não repito os pensamentos
os detritos marcam a minha pele
as cicatrizes o espelho expele

TRANSPARÊNCIAS

o outro não é transparente
mas o outro age como se fosse
as veias dos seus sonhos
o sangue por fora dessas veias
o sistema linfático carregando suas sombras
seus segredos de infelicidade e medo
ele pensa que podemos ver tudo isso
e o seu rosto com um aparente sorriso
aprofunda o vão já carregado de água salobra
o mecanismo do abraço falido
é substituído por gritos encardidos
também agimos como se fôssemos transparentes
lançamos nossas tentativas de sorrisos
em meio às lagrimas
e o outro entende absolutamente tudo ao contrário
como também não entendemos

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

BRINCAR DE TEMPO

o espaço
que uma criança ocupa
não tem retas
é curva a atmosfera
que a abriga
quando dobra
o tempo que fadiga
mostra o fruto
do adulto
que a carrega

O IDIOMA

esse idioma é difícil
toda palavra
perturba qualquer sentido
o silêncio pensado
é um motivo
mesmo feito agora
esse idioma
transforma tudo
em ruínas
lá fora

MEU VENENO

eu te amo
como quem morde
a própria morte
e o veneno
que inoculo
torna o mundo
a parte da chuva
mais forte

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

DA MENOR IMPORTÂNCIA

eu pensei entender a poesia
depois entendi que a poesia
não é pra ser entendida
pensei na poesia salvando o mundo
depois descobri que a poesia
não é deste mundo
pensei na poesia
como a melhor parte da infância
com o tempo descobri
como era grande a minha ignorância
na verdade a poesia
não tem a menor importância

SENTINDO POEMAS

a primeira vez que senti um poema
nem pensei que estivesse sentindo
alguma coisa se abriu por fora
e me tornou o centro
alguma coisa se mostrou por dentro
como se eu não estivesse sentindo
a minha alma se abrindo

RESTAURAÇÕES

a espátula retira
as camadas de tinta
a poesia retira
as camadas de silêncio
a morte retira
todas as camadas

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

PARTIR

melhor não falar nada
e sentir tudo
chorar de madrugada
no escuro
partir
como partem as palavras
erguendo muros

FICAR

ia falar
mas não falou
ia sentir
mas não sentiu
ia chorar
mas não chorou
ia partir
mas não partiu

PAISAGEM INÚTIL

inútil paisagem
na janela
a nuvem esconde a lua
só pra ela
a lua cheia
sábia de espanto
mais inútil que a paisagem
é o meu canto

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A MÁGOA PARECE UM RIO

passei na rua em que tudo aconteceu
todas as portas estavam fechadas
ninguém se lembrava de mais nada
as pedras que receberam o choro
pensavam que era uma chuva passageira
hoje submersas formam o leito do rio
as pedras não sabem o sabor da água
pensam estar num rio
estão num mar de mágoas

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A PARTE FLÁCIDA DO SONHO

aos que carregam o meu corpo
recomendo deixar o amor guardado
entre o que entendo e o plástico
e o resto deixe solto
até porque não haverá
onde guardar
as partes flácidas do sonho
cobrirão onde eu deitar

PARA ENTENDER O DESERTO

quem entende de deserto
entende de miragem
quem entende de tristeza
entende de coragem
sempre pensei que era miragem
esse deserto
minha lágrima um oásis
que não mata a minha sede
eu não entendo de desertos
eu não entendo de tristezas
minha coragem
tornou o mundo uma miragem

PAPOULAS

a papoula estagnada
interrompendo a cerca
imune ao vento
o pólen misturado ao silêncio
como uma primavera sem cor
o verde ao fundo
parecendo o grito
de um homem que acabou

TEMPOS MODERNOS

a lua
usa a televisão
para entrar em casa
antigamente
não precisava

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ORGASMO

era como se eu
ali não estivesse
e o meu corpo
esquartejado
mesmo completo
depois de costurado
formasse o corpo
de outra pessoa

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

FINGINDO VIVER

a melhor forma
de fingir estar vivo
é mostrar-se sábio
parecer saber de tudo
inclusive dos motivos do luto
saber que a morte
é apenas a metade
do que aconteceu antes

O QUE FIZERAM DOS MEUS SONHOS

depois do que fizeram com meus sonhos
restou-me a poesia
mas ninguém dá importância à poesia
a consideram uma atividade supérflua
desnecessária
mesmo quando encanta
ou quando machuca
é tão pobre que se utiliza de palavras
mas um sonho é mais complexo
requer cabeça e rumo
justamente o que me retiraram
por isso fiz da poesia a minha cabeça
fiz das palavras o meu rumo

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

TREVA

o sonambulismo da treva
surpreendeu o dia
não a mim
conduzo-me no escuro
como se o retirasse
de cada passo
o sonho da treva
é cercado de muros
de meus ossos escuros
o alicerce
poderia transpô-los se quisesse
porém prefiro cobri-lo
como se a luz me apagasse

PARA SER SÓ

para ser só basta nascer
o outro sozinho
vai te encontrar no caminho
colar a tua pele à dele
roçar pensando tocar a alma
como se a alma se deixasse tocar
o gozo não vai ser dividido
o choro sairá por cada olho
o abraço não formará um corpo
nunca será a mesma a emoção
nem o pensamento
ou a secreção
para ser só
basta nascer
e alguma coisa entre este momento
e o último
vai te deixar pendurado pelos sonhos
um gancho perfurando a alma
a solidão escorrendo pelos furos
para ser

basta

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O MECANISMO DOS PÁSSAROS

às vezes entendo
o mecanismo dos pássaros
ao ver a tarde
molhada por seus passos
quando poderiam estar
suspensos pelas asas
sujando o mundo
como se fosse a sua casa
entendo a rima
do ninho com a fala
escondem os ovos
como se escondessem suas mágoas

O NOME DAS COISAS

escolha um nome
para a coisa que sente
qualquer nome
ou não sinta mais
e não nomine
escolher um nome
para o que se sente
tira o que sente
de dentro
para a beira do olhar
olhe para o nome
da coisa que sente
esqueça o que sente
e sinta o nome
ou esconda o nome
daquilo que sente
longe da beira do nome
e sinta o que sente
sem olhar

ANIVERSÁRIO

quando havia festa de aniversário
no colégio estadual
as bancas eram encostadas na parede
e as cadeiras encostadas nas bancas
voltadas para a sala
ao centro o birô da professora
coberto com uma toalha de plástico
sobre ela o bolo confeitado
biscoitos pratos de papel
garfinhos de plástico
e jarras de suco feito de um pó solúvel
a coordenadora e a diretora presentes
tornavam tenso o ambiente
todos ficavam sentadinhos
com as mãos sobre os joelhos
observavam uma festa
que dificilmente teriam em suas casas

terça-feira, 4 de outubro de 2011

AS ÁRVORES DO CAMINHO

as árvores que me viram passar
já me esqueceram
eu também as esqueci
se houve alguma lembrança
ficou impregnando este poema
não há verde nem há homem
não há morte nem há vida
apenas as palavras esquecidas

PAPEL DE POEMA

poemas são palavras de papel
quem se fere com poemas
não tem pele
pensa que o sofrimento é sangue
em vão usa a lágrima como torniquete
no papel do poema não há palavras
triste de quem as lava
usando o sangue como lágrima

EUROPA

o que me faz frio
não tem volta
sua clara costa
perdeu minha vista
chego ao cume
sem usar a cabeça
a nuvem cobre
o meu rastro
para encontrar meu caminho
não me aqueça

GOLA

o tempo ao redor do pescoço
feito uma gola
às vezes aperta
às vezes afrouxa
o tempo quer
ser mais medonho
do que aparece no sonho
quer na pele
suas digitais
quer a paisagem dos olhos
que não enxergam mais

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

OSSOS DESMONTADOS

dizem que sou perfeito
nunca me viram com os ossos desmontados
é fácil julgar o conjunto
quando este não possui detalhes
na briga entre a minha lucidez e o haloperidol
eu sempre levo a pior
catatônico ensaio uma sombra sobre o mundo
mas a baba que escorre das palavras
denuncia que ainda vivo

MUNDO IMPERDOÁVEL

não acredito nos dias
como me mostram
a dor que sinto é tatuada
vista no escuro
forma um estranho desenho
aos poucos vai moldando às mãos de um cego
esse mundo imperdoável

DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...