quinta-feira, 27 de março de 2014

TARDE

a tarde tem um remendo
tarde para o conserto
a noite entra
pelo corte estreito
e incha a tarde por dentro




MAIS LEVE

o peso da morte
 cabe na balança dos vivos
o morto viaja leve
dentro do escuro
um gás mais leve que a alma



NA PRAÇA


sentado no banco da praça
o poeta observa o mundo passar
pessoas penduradas
árvores sem roupas
animais com almas esquecidas em obituários
um vento parecido com a chuva
mas quente como o silêncio
mostra aos cabelos uma cabeça desnecessária
o poeta exala um sopro comovido
seu hálito embaça o papel


LUA DE PRATA

a lua de lata
procura a rima
se vestindo de prata


TUDO A DIZER

mesmo se eu soubesse
não usaria todas as palavras
repito algumas
outras invento
dependendo do momento
escondo todas


CASA

sem canto
o passarinho faz da asa
a sua casa


segunda-feira, 24 de março de 2014

JANELAS SEM PAISAGENS

do lado de fora
não vejo a hora
do lado de dentro
não vejo o momento
o ar que respiro
insiste em me manter vivo
não há portas abertas
minha alma
não tem janelas


RACIOCÍNIO

finjo que não estou
raciocinando direito
e envio cartas a mim mesmo
mas não abro
segredos viajam sem medo
enquanto apodrecem
igual aos caminhos
guardados dentro dos sapatos


ESBOÇO DE ILHA

o silêncio me pratica
não me ouvem
não me enxergam
estou sumido
mesmo sem abrigo
estou calado
por todo lado



sexta-feira, 21 de março de 2014

CALIGRAFIA

percebam pela minha caligrafia
que nunca sorri nenhum dia
há o tremor proveniente
da ausência dos meus dentes
também nunca pensei
em chorar por um segundo
meu rosto não se encaixa
nesse mundo
as palavras não percebo
nem sei quando eu escrevo


AO MEIO

cuido da minha tristeza
como quem cuida da vida
deixo ao alcance do estranho
a parte perdida
enquanto a alegria não atinge o osso
parto ao meio e mostro o caroço


quinta-feira, 20 de março de 2014

A MELHOR FORMA DE MORRER

a melhor forma de morrer é agora
a melhor forma de ir embora
é agora
a melhor forma de viver lá fora
é morrer agora
deixar visível
a palavra do invisível
o que estou fazendo aqui
ocupando um espaço
que não é pra mim
melhor eu dar o fora
a melhor forma de morrer é agora


O CU E A CABEÇA

se a poesia não serve pra nada
menos ainda servem as palavras
nada que eu diga
vai mudar o mundo
mesmo que acreditem
as palavras se desprendem do cérebro
vão se formando na boca
e são expulsas
às vezes duras
às vezes fragmentadas
às vezes ralas
iguais às merdas que expulsamos
todos os dias
e dizem que somos as nossas palavras
somos também as nossas merdas
embora muitos esqueçam
são do mesmo corpo o cu e a cabeça





ARRUMANDO A MESA

arrumo a mesa
como se fosse morrer
não me importo com os papéis antigos
nem com os novos papéis
nem com a antiga sujeira
recolho tudo sem observar
jogo dentro de uma caixa
deixo a mesa pura
sem nada que lembre a minha presença
deixo a luz acesa


quarta-feira, 19 de março de 2014

QUANDO COMEÇAR A TER MEDO

guarde seu sorriso sossegado
entre as pregas do asfalto
deixe que os seus pés escorram
até onde o rio alcança
seu lugar talvez seja o mar
ou se for outro lugar
para que serve chegar
mostre seu pranto
cravejado de sorrisos mofados
nunca se sabe
quem vai estar do outro lado
com um pouco de sorte
será um cara no espelho
então pode começar
a ter medo



A LUZ ANTES DE DORMIR

adoecemos
treinamento para o fim
leito mais macio que o chão
chão mais vazio que o fio
adormecemos
esquecemos de avisar o corpo
para não apodrecer


DESESPERO CURTO

meu desespero é curto
acaba logo ali
não sei como espalhar no mundo
escondo o mundo
por aqui



terça-feira, 18 de março de 2014

FECHADURA

abro a porta
e o tempo está dentro
e ao mesmo tempo
está fora

as rugas pingam do meu rosto
e molham a toalha

procuro no espelho
alguém que me conheça

estou longe
nem sei o lugar
espero nunca mais voltar


DESENTENDIMENTOS

entendo o que for possível
a placa requer uma interpretação
fora do meu alcance
os sinais
as palavras
não significam o que eu preciso
o mundo passa tão devagar
movo o meu silêncio como posso
abro outros orifícios no meu corpo
e ainda não me caibo


TARDE DA INFÂNCIA

havia uma caramboleira
repleta de formigas por baixo
esmagadas com dois saltos
e pouca pontaria
havia graviolas
penduradas por fios imaginários
sementes acesas por dentro
ao centro
a goiabeira e os galhos
marcados pelas nossas costas
contra o cais
o mar dos nossos cuspes
com os orgasmos solitários submersos


LUGAR PRA GUARDAR

não lembro a cara
que o médico fez
quando me viu
pela primeira vez
lembro que o cheiro de sangue
vai ficar pra sempre guardado
em algum lugar
da minha cabeça
no lugar mais alto
onde eu nem penso


TAMANHO DA VULVA

revi os retratos sobre o sofá
o mundo do tamanho da minha vulva
vontade de cortar eu tenho
só não tenho mais pulso
tenho uns cabelos pouco vistos
chapéu da rua e o vinco
da calça que guarda
um monte de garrafas
de sangue até o gargalo
atravessado na garganta
parece que sou eu
o sol que se levanta
mas é apenas o céu
que ainda canta


sexta-feira, 14 de março de 2014

DESCOLADO

me sinto descolado do mundo
o mundo está longe e solto
pessoas passeiam igual ao vento
desmancham meus cabelos
conversam com a minha alma que se arrasta
uma âncora que perdeu o juízo
não enxergo o mundo com meus olhos
uso palavras e todas são cegas

CANO

a vida pinga
lentamente
até que alguém conserte

quarta-feira, 12 de março de 2014

A IMPORTÂNCIA DA IMAGINAÇÃO

empurro meu mundo para o mundo
a vida é seca e finge ser molhada
colo a minha boca nessa fonte
e perco os dentes
bebo areia imaginando sumos
é preciso imaginar tudo
se quiser o mundo

GRAVIDADE

a gravidade puxa a poesia para o chão
esse cheiro de terra não é por acaso
nem esse pensamento raso
pisamos o que sentimos
a vida fica mais poética
quando somos enterrados


ABRIGO

a chuva caída no pesadelo
tem o tamanho da calma
os olhos vão se abrir
e o corpo seco
vai lembrar
de se abrigar


CHUVA

a chuva se precipita
em desespero
quase uma nuvem paralisada
que não suporta o branco
da sua pele
e se desmancha em água

segunda-feira, 10 de março de 2014

PASSOS

ruas de Katmandu
ruas de Recife
meus sapatos
desenham passos
que pensam me pertencer
vão por onde a brecha
do mundo achar
se eu me achar no mundo

SUPORTE

suporto a dor
como o poro
suporta o suor
sem levantar
uma palavra
sem levitar
a alma

quinta-feira, 6 de março de 2014

ANDOR

a tarde me evita
como se estivesse magoada
encosto-me ao mundo
ele se nega
desabo sem perder pedaços
rolo inteiro
até alcançar o fim
perdido na multidão
assisto carregarem o meu corpo
enquanto recito
invento outra língua
não entendo o que digo
finjo-me de surdo
deixo que as palavras
imitem os meus gestos

SEI DE NADA

sabe de uma coisa?
então já sabe muito
eu não sei de nada
pensei que estivesse
escrevendo um poema
e deu nisso

A PALAVRA BÊBADA

sem remédio
a palavra insiste em permanecer agarrada ao corpo
doente como uma noite sem escuridão
bêbada de luz
acende sonhos ao tropeçar

DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...