quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

MINHA LUA

há uma lua
para cada poeta
cadê a minha? cadê a minha?
eu sou o chão
onde o escuro desaba
os pés dos cegos
marcam as minhas costas


FORA DO MERCADO


minha poesia
está fora do mercado
fora do freezer
fora da geladeira
fora do armário
minha poesia
está fora de órbita
da órbita dos olhos
fora de hora
fora do corpo
do corpo do morto
minha poesia 
não está aqui agora
minha poesia 
está por fora

RUMOR

ouvi rumores
de que os passarinhos
não cantariam mais por aqui
já eram os cantos


SOBRA DE GLÚTEO

peido
é sobra de glúteo
merda
é sobra de glúteo
calça
é sobra de glúteo
outras coisas
são sobras de glúteo
glúteo é a cabeça
sobras são as palavras

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

BOCA MORDIDA

minha boca antes da mordida
movida do rosto
ao encontro de um lugar
sem encosto
suspensa no ar
antes da vida
minha boca mordida

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

ESCUDO

na beira da página
na beira de tudo
um não sei o que fazer com o poema
lembro das horas
lembro de algumas pessoas e
de algo que não sei o nome
mas que me puxa
para dentro
da beira do escuro
a vida vem pontiaguda
e eu não tenho escudo

AÇUCAREIRO

as formigas
invadiram a minha boca
e comeram as palavras
pensavam que estavam se alimentando
estavam se matando

NÃO SEI O QUE É TRISTEZA

não sei o que é tristeza
talvez por isso me sinta
tão desamparado
a alegria é movediça
sem ser areia
não ser alegre nem triste
não é uma boa ideia
não sei o que é alegria
talvez por isso me pareça
personagem de um sonho
a alegria e a tristeza
não cabem na minha cabeça
talvez por isso anulem
a necessidade do meu corpo


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

DESEJO SUBMERSO

as coisas com que brinco
sempre pontiagudas
uso luvas
e as mãos de outras pessoas
abraçado ao brinquedo
meu desejo perfurado
afunda
ninguém percebe
outra parte do meu corpo
que não vai ser recolhido

AFAGAR


afagar
até o carinho
formar uma cicatriz
afagar
até o sangue sair
para bem longe
morar em algum lugar
onde as mãos
não alcancem

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

ENGOLE

não basta apenas
molhar a boca
é preciso lubrificar
todo o tubo
derramar a água
por dentro
até atingir o centro
beber o que for possível
até atingir o nível
do acessível
não basta apenas
ter a boca
é preciso o motivo
para abri-la
no momento certo
até atingir o objetivo


VIDRAÇA


meu remorso
está colado ao relógio
mas não para as horas
a angustia inunda a tarde
em ondas sonoras
e eu não sei nadar
da praia observo
o mundo caindo
como uma chuva
há goteiras na minha alma
difíceis de aparar

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O QUE OS TOLOS ENTENDEM

seco
corri ao encontro de algum sonho
o dia parecia perdido
entre os meus dedos
despercebido sob os meus passos
o vento parecia outra pessoa
que ainda não aprendeu a abraçar
passou por mim
como a dor também algum dia vai passar
espero
mas não entendo
apenas os tolos entendem
porque a chuva cai
e guardam esse segredo
entre os cabelos e o medo




segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O BICHO E O SENTIMENTO

você olha para o bicho
e o bicho nem percebe que você existe
você pensa que já sentiu tudo
mas de repente aparece um sentimento novo
e pensa que o bicho nunca sentiu
sentimentos novos ou antigos
você olha para o bicho
e não sabe o que fazer
com o que está sentindo

domingo, 16 de fevereiro de 2014

PENSANDO NO ESCURO

dá trabalho
pensar no escuro
requer estar no meio
de algum atalho
requer ser veio
sem o talho
requer ser puro

NEM UM QUARTO

cruzo portas janelas
invado salas espaços
não atinjo um quarto
do que procuro
repouso embriagado
sobre a nuvem
penso
até furar a paisagem
e pelo furo escorro
junto com tudo
que procuro

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

DESEMBARQUE ARTIFICIAL


desembarco nas costas do mundo
ancas de plástico me recebem
poucos percebem o sol artificial
mesmo assim fabricam sombras
a poesia é o torniquete
para o meu tédio
o silêncio é um caminho mais áspero
entre os dois
cavo essa espera
sem saber que é a minha cova

EXERCÍCIO DE ESQUECIMENTO

as ruas por onde passei
não lembram de mim
nem as pessoas
que cruzaram por mim
lembram de mim
eu também não lembro de nada
nem faço questão de lembrar
viver o momento
é um constante exercício
de esquecimento

DOSE DIÁRIA

certos comprimidos
não engulo
penduro na gengiva
riso amarelo se desmanchando
melhor efeito
permanecer assim
o surto me leva
dessa pra melhor


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

MELHOR DEIXAR COMIGO

preciso te mostrar uma coisa
precisa ser aqui dentro
veja
melhor não tocar
assim vai manchar
vai ocupar muito espaço
melhor deixar comigo
sei muito bem
como você guarda as coisas
também sei que vou perder
mas vai passar mais tempo comigo

O QUE ME MATA

meu pescoço
no avesso da gravata
ainda não é isso
que me mata
o calor pingando
fogos artificiais
a espera de uma escuta
uma palavra simpática
algo que me faça
não pensar mais
essas coisas
o que me mata
passa longe
do que eu vejo
e engole tudo
que eu sinto

COMA SEDUZIDO

estou na mesma
estado de coma seduzido
boio num mar de soro
e algum medicamento
cujo nome desconheço
mas arde quando entra
e provoca esse sonho
onde penso na morte
sem precisar da cabeça

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

MOTIVOS PARA NÃO MATAR

hoje eu mataria alguém
inapelavelmente
mataria alguém se existisse alguém
não enxergo nada ao meu redor
que já não esteja morto
crianças nascem e já começam
o processo de apodrecimento
apodrecer é o princípio ativo da vida
meus dentes postiços apodrecem
minhas flores apodrecem
meus irmãos
minhas mãos apodrecem
tudo o que sinto apodrece
meus carinhos podres afagam corpos podres
meus pensamentos podres
na minha cabeça podre
do que adianta matar
algo que já está morto
retorno ao meu problema
mataria alguém hoje
inapelavelmente
repouso ao lado dos outros corpos



ELEGÂNCIA DO ABISMO

superar a elegância do abismo
com uma queda fácil
e talvez por isso
desvestir a alma e repousá-la
à beira
e talvez por isso
não ser completa a queda
e talvez por isso
não esteja à altura

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

QUERIA SER FLOR

a flor no lugar da face
foi o que recebi
respiro essa cor
exalo fácil
água estreita em minhas veias
provoca meus membros
para o alto
queria ser flor
mas não sou calmo
arrasto a raiz
sem dar um passo

JÁ LACRARAM TUDO

a solidão do morto
vai apodrecer
antes do corpo
como saber se já lacraram tudo
as flores vão saber
vão carregar na alma
a marca de um cheiro
que nunca vamos conhecer
talvez o morto
nem queira
que a solidão apodreça
mas como saber se já lacraram tudo
talvez o morto
nem queira estar ali
ou está olhando tudo
com o idioma do olhar
que nunca aprendemos
mas como saber se já lacraram tudo
talvez sejamos o morto
e tudo o que vemos
não passa de um sono
onde não temos sonhos
mas como saber se já lacraram tudo

ANTES DA FACA


falaram-me da possibilidade da escolha
a poesia escondida num talho
ou um enrugamento descoberto
ergui um muro num atalho
onde eu pudesse colher musgos
senti mais perto da casa
o corpo onde não caibo
a escolha deixa que eu fique
no melhor esconderijo
antes da palavra antes do brilho
antes da faca

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

SORRISO NÃO RESOLVE

antes
eu pensava que sorrir
resolveria tudo
meus dentes me ensinaram
a resolver tudo
com mordidas
arranco um pedaço
e sempre me oferecem outro
pra cuspir
engulo um pedaço
e logo me oferecem outro
pra carpir

POEMA GUARDADO NO OLHO

transfiro o meu suor
para outra posição
antes do meu passo
e após o susto
suspenso parecendo água
com o sal atravessado na garganta
evapora a sombra
pouca coisa movo
meus passos meu suor
este poema
agora boia no teu olho
mas preferes chorar
a ter que entendê-lo

SONDA

entre o final da coxa do rio e a sonda
encontrei o meu corpo
a água virada igual a pagina
o refluxo suportável
não atingiu a palavra
agora mesmo fui e nem toquei o fim
nem me toquei
meu corpo no final da coxa
sondado por um absurdo silêncio
espalha em gotas
estas palavras mofas

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

EMBALAGEM

a poesia esconde o mundo
num frasco transparente

O AMOR POR DENTRO

o amor por dentro
tem tripas
e outros tipos de vísceras
tem também sentimentos
que o próprio amor não sabe
o amor não sente
é sentido
além dos outros cinco
o amor por dentro
é escuro
espera a luz pelo furo
de onde vaza

OSSO CRIATIVO


o osso criativo
não cabe na carne
é pó antes da pedra
é sangue antes da queda
é angustia antes da perda
coberto
um morto escondido
exposto
um corpo extinguindo

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

DE BARRO

pensei que ao quebrar o coração
molharia as minhas mãos
os cacos secos cravaram segredos
entre o meu poro e a tarde

DEPOIS DA CHUVA

a água que molhou a asa do passarinho
fabricou esse canto
onde cabe o mundo
e um pouco que sobrou do lado de fora
esse poema agora

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O TEMPO PASSA

o tempo passa
o corpo em repouso
o tempo passa por cima
nem precisa usar todo o peso
levemente deixa a marca
busca o nivelamento com o solo

O POEMA ENGAVETADO

o poema guardado na gaveta
junto com as meias
não sabe que pés vão calçar
traças um caminho
sem saber dos teus passos
baratas são as buscas
que não levam a nada
o poema guardado na gaveta é um equivoco
um papel repousado na gaveta
juntamente com as meias

JANELAS FECHADAS

a poesia funciona
como janelas
quem passa lá fora
não as enxerga
escuta o barulho das palavras
que não necessitam de alfabeto

DANO

  palavras invisíveis despregam do sono   é feita de giz a raiz do abandono   minha solidão não tem dono