sexta-feira, 28 de junho de 2013

TRISTEZA LINDA

uma tristeza linda
e um espanto
moldaram a calçada
embora nua
o rosto emparedado no muro
os ossos no murro
por onde navegava
tudo era lágrima
fisgava rancores que tremulavam
pensando que eram peixes
para onde vai essa água salgada
para onde o mar não sabe

CRESCIMENTO

quando eu crescer
não vou ficar do meu tamanho
vou ficar do tamanho do estranho
que mora em mim e desconheço
serei mais estranho
do que eu mesmo
enquanto cresço

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O QUE A CHUVA MUDA

a chuva mura
o impossível
mãos afagam o barro
tentando moldar uma vida
sobras espalham-se
sombras empalham-se
a chuva muda
pedras do lugar
não a água

PACÍFICO

quando eu carregava bandeiras
eu era calmo
até que me arrancaram os braços
quando eu gritava
eu era tranquilo
até que me arrancaram a língua
quando eu corria de encontro às barricadas
eu era sossegado
até que me arrancaram as pernas
agora sou apenas um tronco
boiando no oceano pacífico


MULTIDÃO

meu rosto se perde na multidão
minhas palavras não
elas são a multidão
na qual os rostos se perdem

quarta-feira, 26 de junho de 2013

NINGUÉM ME AVISOU QUE EU ESCREVERIA ASSIM

ninguém me avisou que sangraria
se eu soubesse
teria começado mais cedo
descobriria palavras nas pedras
nos fios de cabelos do tempo
teria prestado mais atenção
quando o silêncio fazia a curva
e derrubava a angústia bifurcada
ninguém me avisou que doeria
se eu soubesse
nunca teria interrompido
faria poemas sem fim
principalmente
quando eu não estivesse presente
teria me postado
de maneira que meu corpo
não fosse notado
espalharia minha alma
por todos os cantos
seria a melhor música silenciada
ninguém me avisou que eu sofreria
se eu soubesse
teria murchado com mais força
teria mostrado a madrugada
que cobria a minha entranha
teria me iludido com mais facilidade
teria sido o primeiro a arrancar
os dentes da felicidade
ninguém me avisou
que tudo terminaria assim
ninguém me disse
que a dor nunca teria fim
ninguém me encaixou no precipício
ficaram frouxos meus nervos
meus medos
meu modo de esquecer o princípio
ficaram frouxas as palavras

LAGOA SECA

depois que a lagoa secou
apenas lembraram o barco encalhado
esqueceram das árvores
que não mais refletiriam
esqueceram da sede
que não mais se espreguiçaria
esqueceram que as escamas dos peixes
tornam-se estrelas
esqueceram da água
que os observava
enquanto sobrevoava

terça-feira, 25 de junho de 2013

TUDO QUE QUEREMOS

o que queremos conseguir
não tem pele
não há como contar
sem pedaços
o que completa
ficar fora do possível som
da necessária luz
da contraditória dor
não há como cantar
sem saber ouvir

SEM OS CORPOS

acordamos
levantamos e seguimos
muitos não conseguem acordar
e mesmo deitados seguem
para algum lugar
escondemos os seus corpos
ou queimamos
para onde eles foram
não precisam de corpos
para sonhar

segunda-feira, 24 de junho de 2013

TAMANHO DO PENSAMENTO

meu pensamento
durante a morte
ficará comigo
como fica comigo
meu pensamento
durante o gozo
a grande morte
a pequena morte
e os pensamentos
do mesmo tamanho

O AMOR

o amor é duro
depois é água
depois evapora
o amor é nuvem
depois dissipa
ou chove
o amor molha a terra
o amor é lama
depois seca
e racha


sexta-feira, 21 de junho de 2013

POEMA PARA SER TRADUZIDO

pode parecer estranho no início
mas depois você se acostuma
estamos falando o mesmo idioma
isso já é um bom começo
talvez surjam problemas em outra língua
se é que alguém vai traduzir isso
como eu falei no início
parecerá estranho
mas depois da oitava linha
você vai começar a entender
exatamente o que eu quero dizer
afinal falamos o mesmo idioma
melhor começo impossível
e se estivesse escrito em outro idioma
ainda seria traduzível
sei que pode parecer estranho
mas com o decorrer da leitura
você vai entender o que estou dizendo
como eu já falei no início
e repeti no meio

es mag zunächst seltsam
aber dann bekommst du benutzt
wir sprechen die gleiche sprache
dies ist bereits ein guter anfang
probleme können entstehen in einer anderen sprache
wenn jemand geht um es zu übersetzen
wie ich schon sagte am anfang
es mag seltsam erscheinen
aber nach der achten zeile
sie beginnen zu verstehen
genau das was ich meine
immerhin sprechen die gleiche sprache
best start unmöglich
und wenn es in einer anderen sprache geschrieben
würde noch übersetzbar
ich weiß, es mag seltsam erscheinen
aber im laufe des lesens
sie werden verstehen was ich sage
wie ich schon sagte am anfang
und wiederholen der mitte

quinta-feira, 20 de junho de 2013

ADMINISTRANDO SAUDADES

administro a saudade
de acordo com o tempo
dois minutos aqui
meia hora ali
alguns dias meses
à falta de alguém me refaço
depois administro o espaço

MINHA FALTA

às vezes sinto a minha falta
em que parte da casa ou da rua
fiquei escondido de mim
em que parte da vida me perdi
em que parte da luz me apaguei
em que parte do mundo me deixei
onde me larguei
onde me misturei aos detritos
ao lixo
onde permaneci fixo
ou segui em frente
sempre sem mim
onde me encontrarei
se por acaso eu me encontrar
e me reconhecer
neste momento
sentirei mais a minha falta
quando me desconhecer

quarta-feira, 19 de junho de 2013

VARAIS

ciclistas alongam-se em torno das rodas
cuspes disparam pelas laterais
uma chuva miúda disfarçada de pessoas
treme como se estivesse despida
roupas varam os varais
e eles que não são bobos
transmitem a energia necessária para o vento

terça-feira, 18 de junho de 2013

BURACOS

a boca é um buraco
que ainda não sei utilizar
comer chupar morder falar
beber sorrir gritar calar
isso não quer dizer que sei utilizar
tenho outros buracos
que utilizam outros verbos
e também não sei utilizar
ligar o verbo ao buraco
não é o mesmo que acioná-los
buracos não são verbos
nem verbos abrem buracos
nem conseguem fechá-los
eu tenho muitos buracos
e outros que ainda serão abertos
buracos são apenas buracos
nem errados nem certos

CENAS DE GUERRA

cenas de guerra
o termo usado
falaram e repetiram
eu vejo sempre cenas de guerra
quando atravesso a favela
para encontrar um ser humano
quando entro na fila
para exercer o meu direito de ir e vir
dentro de um veiculo
denominado coletivo
vejo cenas de guerra
quando adoeço e procuro um médico
no meio da multidão
vejo cenas de guerra
durante a seca no sertão
sentado à sombra das parreiras
de uma propriedade vizinha
vejo cenas de guerra
nos sinais nas esquinas
na porta da minha casa
vejo cenas de guerra
falo e repito

MOMENTO SOZINHO

a poesia é o meu
momento sozinho
depois saio
e este é o momento
dela sozinha
exposta
como um nervo
de uma folha
que parecia unida
ao corpo à pagina
e agora
sob o olhar do mundo
parece acompanhada
e na verdade está
acompanhada da morte
da minha presença

segunda-feira, 17 de junho de 2013

NAFTALINAS

minhas inclinações suicidas
não me permitem pulsos
baratas não comem a minha felicidade
ela estava guardada na gaveta
entre venenos e naftalinas
a gaveta perdeu-se entre os móveis
que queimei no último incêndio
eu era as labaredas



ONDE A POESIA ACABA

brinco
onde a poesia acaba
enfeito de silêncios meus cabelos
minha cabeça inflada e seus frutos
perdida entre as pedras do muro
a primavera emparedada
perfuma os escuros que carrego
minhas mãos amassam as luzes
aos poucos amoldam o que não pode clarear
algum lugar
depois que a poesia acabar

AO VER MEU CORPO

inauguro a carne
com o sangue
antes não soubesse
ignorante ao corte
pudesse transformar
o que não posso
e retornar ao óbvio
osso nervo envoltório
de algo que se move
sem nenhum motivo
algo que está vivo
só porque é visto

sexta-feira, 14 de junho de 2013

PORTOS

diante do aeroporto
não me importo
se os aviões vão pousar
não me importo
para onde vão os trens
de onde os carros vêm
onde os homens estão
para que servem os compartimentos
onde ficamos guardados
depois dessa vida
não me importo
se os navios não afundam
quando estamos caminhando sobre as águas
não me importo
com as portas
que se abrem quando não precisamos
não me importo
com os pés que nos carregam
para um lugar
que nunca pensamos
não me importo
se no final todos morrem
ter para onde ir
é o que menos importa

quinta-feira, 13 de junho de 2013

CONVIVÊNCIAS

eu continuo nervo
tu continuas dor

BENGALA

é sempre bom
manter uma bengala em casa
nunca se sabe
quando uma perna vai ser perdida
outro dia
de tanto olhar uma paisagem
perdi o olho
ele se transformou
no que eu sentia ao ver a paisagem
implantou-se na minha cabeça
que de tanto pensar no sentimento
terminei perdendo a cabeça
ela se espalhou pelo meu corpo
de tal maneira
que ele não aguentou
meu corpo se tornou o mundo
restaram essas palavras

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A LETRA QUE ME FALTA

triste diante de palavras
de difícil entendimento
mas comoventes
sento ao pé do silêncio
mastigo folhas
mesmo as sem palavras
meu coração diz que sou mudo
meu coração fala mais do que eu
vou morrer e ele vai continuar
batendo essa mesma tecla
essa letra que sempre escapa
da palavra exata
essa letra que me falta

CAMINHOS

cobra não escolhe o caminho
nem o passarinho
piso da mata
chão do zoológico
galho de árvore
pau da gaiola
ninguém escolhe o caminho
parque
escritório
hospício
cadeia
ninguém escolhe

FORMA DA ÁGUA

a novidade da água
é pouco sabida
bebê-la vertê-la retê-la
e não vai sobrar nenhum rito
talvez se fosse líquida
coubesse num poema
mesmo sem fundo
transformaria o silêncio
em paredes

terça-feira, 11 de junho de 2013

AS ÁRVORES CAEM

não escolhemos as árvores
que vão cair
elas caem simplesmente
caem sobre as casas
os automóveis
caem sobre as pessoas
caem dos poemas
caem das janelas
caem caem
deixam no rastro
um buraco
suas raízes estranhas
e cansadas
suores de terra e escuridão
logo preenchido
por outra árvore
não escolhemos as árvores
como também não nos escolhem
simplesmente caímos
e deixamos buracos
que nunca mais
serão preenchidos

ASCENSÃO E QUEDA

o amor ascende
mais que a mão
o braço
do náufrago
mostra-se
todo o corpo
só que já está morto

segunda-feira, 10 de junho de 2013

BANCO DE DADOS

meu saco escrotal e eu
sabemos que os netos
dos meus netos
não vão se lembrar de mim
não se penduram mais retratos
na parede
nem se penduram pessoas
nas lembranças
o tempo interrompido nas fotos
tornam-se dados
guardado no banco de dados
guardado nos dados
lançados pelo tempo
noutros bancos de dados

sexta-feira, 7 de junho de 2013

SORRISO E ARDÓSIA

meu sorriso e o assombro
não havia motivos
assim como as folhas de ardósia
formavam as fileiras enlouquecidas
meu sorriso enfileirado aos outros
formava um estranho desenho
meu assombro tomou corpo
sem um coração no centro
espero o retorno de quem o carregou

O LADO DA VIDA


acordar
e não saber
de que lado da vida
devo estar
o lado certo da vida
o lado errado
o lado direito
o lado alagado
o lado seco
o lado lotado
de que lado da vida
devo estar
se ela está ao meu lado
deveria bastar
para saber se a vida está
ao meu lado
para que lado
devo acordar
acordo do lado certo
do lado errado
do lado onde
eu nem seja notado
pela vida
quem nem sabe
que está ao meu lado

quinta-feira, 6 de junho de 2013

ESPERO A NATUREZA PASSAR


uso o sol
como um cantil
a luz molhando a minha camisa
descanso à sombra dos prédios
espero a natureza passar
sobre o meu corpo
em vão
aos poucos me incorporo ao tráfego
escarro carros
excreto aços
estoco corações nos alforjes
quem sabe algum um dia
encontrarei os homens

SUPERFÍCIE POROSA

as palavras líquidas
sobre a superfície porosa
da poesia
aos poucos vão se esvaind

COMO SE FAZ UM POETA

no dizer antes
faz-se o poeta
antes da palavra
antes do silêncio
antes desse espaço entre eles
antes de hoje
antes de agora

REBORDADO

rebordo imerso
em conforto
linha que escapa
dos dedos
agulhas apontam
caminhos
largo esse tecido
em que me escapo
escalo o fim
entre mim e o acaso

terça-feira, 4 de junho de 2013

SOBRE O ENTENDIMENTO


namoro as árvores
espero algum dia
ser expelido por elas
num outono serei alguma folha
sem que ninguém entenda
porque não ser uma flor na primavera
entendimento requer alma
coisa que não tenho
desista de entender as pessoas
passarinho voa
porque não é otário

RIGOR MORTIS

um poema não morre
seu corpo inerte
sob o olhar entristecido
é apenas a melhor maneira
de mostrar nunca ter existido

segunda-feira, 3 de junho de 2013

FURO

mais fácil furar um couro
um objeto pontiagudo e força
furar o silêncio
não requer objetos nem força
nem sempre o som fura o silêncio
nem uma palavra escrita
é difícil furar o silêncio
antes de tudo
é preciso encontrá-lo
limitar o local a ser furado
encontrar o objeto exato
e utilizá-lo
e depois ter um lugar onde guardar
tudo que o silêncio vai derramar

DEMOCRACIA

fale
desde que o outro não escute
faça
desde que o outro não veja
ouça
desde que o outro não fale
seja
desde que o outro não saiba
veja
desde que o outro não mostre
mostre
desde que o outro não veja
sofra
desde que o outro não sinta
morra
desde que o outro não saiba

DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...